sexta-feira, 17 de maio de 2013

Restrições ao Direito de Propriedade por Questões Ambientais

A criação de Áreas Protegidas

 

Direito ao Ambiente e Direito de Propriedade

    Desde a Declaração de Estocolmo de 1972 já não mais se discute o papel do meio ambiente no espectro jurídico-político pois, em momento posterior, surgiu com dignidade constitucional nos vários Estados. De acordo com esta Declaração, o Homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas num meio cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar o bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras.
    A nível interno o direito ao ambiente e à qualidade de vida encontra hoje consagração expressa no artigo 66º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). Apesar da sua inclusão sistemática no catálogo dos Direitos Sociais a doutrina tem entendido que se trata, pelo menos em algumas das suas vertentes, de um direito análogo aos Direitos, Liberdades e Garantias (artigo 17º CRP), com todas as consequências que desta qualificação decorrem em termos de regime como a aplicabilidade directa e a vinculabilidade das entidades públicas e privadas nos termos do artigo 18º, nº1 CRP.
    O direito ao ambiente tem uma vertente negativa que atribuí um direito de defesa do ambiente, impondo aos cidadãos e ao Estado a abstenção de condutas lesivas dos bens jurídicos ambientais. Numa vertente positiva impõe-se ao Estado uma prestação jurídica de acção positiva determinando, consequentemente, que este ente deve promover um conjunto de medidas directamente orientadas para desenvolver “um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado”. Ademais o artigo 9º CRP estabelece que, de entre as tarefas fundamentais do Estado, se encontra a promoção do bem-estar e da qualidade de vida, mediante a efectivação dos direitos ambientais. Para além destas vertentes tem-se entendido que decorre ainda deste direito ao ambiente um direito à participação procedimental dos cidadãos, nos procedimentos que envolvam a tomada de decisões no domínio ambiental, e um direito a prestações de facto do Estado no sentido em que este deve criar infra-estruturas que permitam uma melhoria geral das condições ambientais. Neste sentido muitos reconhecem o direito ao ambiente como um direito fundamental da terceira geração, marcado pela solidariedade e fraternidade ambiental.
    Para garantir a efectividade dos preceitos constitucionais foi assumida a necessidade e o objectivo político de aprovar uma lei de bases com o intuito de dar corpo à Constituição Ambiental (expressão usada, por exemplo, por Gomes Canotilho por considerar que é notório, na CRP, a riqueza e a potencial densificação dos comandos normativos em questões ambientais) e assim desenvolver os respectivos princípios. Surgiu assim, no nosso ordenamento jurídico, a Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 07 de Abril). Para Vasco Pereira da Silva esta lei é o melhor instrumento para moldar juridicamente a política de ambiente e a prosseguir, numa lógica de verdadeiro e efectivo Estado pós-social de Direito. Actualmente este autor mostra-se crítico quanto a esta lei devido à sua falta de actualidade e à necessidade de adequação da mesma a novas realidades neste domínio. No artigo 3º desta lei podemos encontrar oito princípios caracterizadores da tutela ambiental: prevenção, equilíbrio, participação, unidade de gestão e acção, cooperação internacional, procura do nível mais adequado de acção, recuperação e responsabilização. Para Vasco Pereira da Silva, partindo também da análise do texto constitucional, existem quatro princípios fundamentais que norteiam a disciplina ambiental: 1) prevenção: este princípio, entendido de forma ampla, é o princípio estruturante, âncora. Numa sociedade de risco é preciso que o Direito antecipe, evite e minimize os efeitos nefastos para o ambiente. Este princípio tem como objectivo evitar lesões ao meio ambiente através da antecipação de fenómenos, humanos ou naturais, de possível perigo, ou seja, é feito um juízo de prognose mas tendo sempre em mente os acontecimentos do passado para assegurar a previsibilidade; 2) desenvolvimento sustentável: este princípio tem como objectivo compatibilizar a actuação da economia com a preservação do equilibro ecológico, ou seja, se a actividade económica for excessivamente desvantajosa para o ambiente deve ser afastada. Neste sentido cria-se um especial dever de fundamentação das decisões, devendo prevalecer a questão ecológica. Assim este princípio atende a um desenvolvimento de acordo com as necessidades do presente, mas sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras terem as suas próprias necessidades; 3) aproveitamento racional dos recursos: este princípio parte da constatação de que os recursos naturais são escassos, logo devem ser bem aproveitados, com vista a atingir a eficiência ambiental na tomada de decisões; 4) poluidor-pagador: este é o princípio que impõe ao poluidor o dever de suportar as despesas de prevenção, reparação e repressão da poluição, ou seja, estabelece que o causador da poluição e da degradação dos recursos naturais deve ser o responsável principal pelas consequências da sua acção ou omissão. Este começou por fazer parte da política fiscal de promoção do ambiente com vista à internalização dos custos ambientais por parte das empresas mas, hoje em dia, corresponde antes a uma dimensão de subvenção, ou seja, o direito fiscal deu lugar, neste âmbito, ao direito orçamental. O referido autor realça ainda que, como princípios constitucionais, vinculam o Legislador à sua efectivação e protecção (havendo responsabilidade deste por acção e por omissão), o Juiz, na tomada de decisões, e a Administração Pública, funcionando como limites ao desenvolvimento das suas funções.
    Neste âmbito importa ainda salientar que, havendo uma violação deste direito, em que seja atingido o núcleo essencial do mesmo, a consequência será a nulidade (artigo 133º, nº 2, alínea e) do Código Procedimento Administrativo, doravante CPA).
    O direito de propriedade é reconhecido e protegido a nível do direito internacional quer pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 17º, quer pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 1º do Protocolo Adicional Nº 1). No que respeita à protecção conferida ao direito de propriedade pela DUDH esta é recebida e aceite directamente pela CRP que, no artigo 16º, nº2, dispõe que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
    No que respeita ao direito interno, o direito de propriedade é regulado na nossa Constituição, em primeiro plano, no artigo 62º. No nº1, que mantem a redacção originária de 1976, prevê-se que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”. Já no que se refere ao nº 2 este foi objecto de duas alterações, sendo que a primeira decorreu com a revisão constitucional de 1982 e a segunda, que lhe deu a redacção actual, foi operada pela revisão de 1989. Actualmente o referido número consagra a obrigatoriedade de pagamento de justa indemnização ao proprietário, em todos os casos de requisição e de expropriação por motivos de utilidade pública, ou seja, quando ocorrem situações de privação do direito de propriedade ou do uso de determinada coisa, por um acto de autoridade pública.
    Este direito já foi, nomeadamente nas constituições liberais, entendido como o direito estruturante, dentro do elenco dos Direitos, Liberdades e Garantias, e tido por muitos como um direito absoluto e inviolável. Actualmente não podemos afirmar semelhante coisa pois direito de propriedade não goza do mesmo estatuto constitucional de que disfrutou outrora e não se trata já de um direito absoluto e ilimitado. Este direito é antes exercido em conformidade com a Constituição e com a lei, pelo que se revela como um direito submetido ao desempenho de uma função social. Importa por isso fazer uma breve referência à função social da propriedade, sem prejuízo de um posterior desenvolvimento, pois a doutrina e jurisprudência maioritárias defendem que este direito se constitui previamente limitado por esta mesma função. Segundo Gomes Canotilho “o direito de propriedade individual é um direito de expressão constitucional, um direito pois fundamental, um dos que a comunidade política elegeu como indelegável da pessoa, como instrumento natural do seu desenvolvimento económico, social e cultural”. Assim tem-se entendido que o gozo das faculdades que estão inerentes ao direito de propriedade está intrinsecamente condicionado pela prossecução dos objectivos sociais consagrados na CRP, ficando assim o Legislador incumbido da tarefa de harmonizar o interesse social com o interesse individual. Neste sentido, com base nos princípios gerais da CRP, a lei pode estabelecer restrições ao direito de uso e fruição dos bens por parte dos proprietários.
    Do ponto de vista sistemático este direito insere-se no catálogo dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, mas a doutrina maioritária tem entendido que embora não esteja positivado como um Direito, Liberdade e Garantia deve ser-lhe atribuído um estatuto jurídico-constitucional análogo ao daqueles, gozando por isso de centralidade no ordenamento jurídico-constitucional português. Esta classificação doutrinária não está isenta de consequências pois submete o direito de propriedade ao regime específico de protecção que vigora para a supracitada espécie de direitos fundamentais. A dúvida é saber se será aplicado todo o regime destes direitos ou apenas parte da sua extensão.
    Quanto aos direitos análogos constantes do Titulo I da Parte I, a doutrina é unânime no sentido da aplicação de todo o regime dos Direitos, Liberdades e Garantias. Porém o direito de propriedade não consta deste título pelo que cabe atentar às diversas posições doutrinárias. Nomeadamente para Jorge Miranda, Paulo Otero e José Casalta Nabais o artigo 17º não se reporta senão ao regime material, ou seja, os direitos fundamentais de natureza análoga apenas beneficiam do regime material dos Direitos, Liberdades e Garantias. As razões são as seguintes, como ensina Jorge Miranda: 1) “Situado na parte de Direito Constitucional substantivo e a preceder imediatamente princípios dessa índole, não se vê como o artigo 17º pudesse cobrir também regras orgânicas e de revisão constitucional, pois estes têm uma lógica e função próprias”; 2) Se a alínea b) do nº 1 do artigo 165º da CRP configurasse uma cláusula geral, então as alíneas e), j), n), r) e s) do mesmo numero seriam redundantes; 3) “Menos aceitável ainda seria que Direitos Fundamentais criados por lei, de natureza análoga à dos Direitos, Liberdades e Garantias, tivessem de ser, no geral, regulados por lei da AR”.
    Em sentido contrário pronunciou-se já o Tribunal Constitucional (Acórdão nº 404/87, de 29 de Julho) sobre a aplicação do âmbito da reserva de competência legislativa do Parlamento também aos direitos de natureza análoga, fora do Titulo I da Parte I da CRP, estendendo-lhes, pois, o regime orgânico (artigo 165º, nº1, alínea b) da CRP). Assim entende que o “direito de propriedade privada é, no seu núcleo garantístico essencial, um direito fundamental análogo aos Direitos, Liberdades e Garantias, e, como tal, está sujeito ao regime jurídico-constitucional destes, incluindo a reserva parlamentar”, por força do artigo 17º da CRP. Este regime jurídico (incluindo a reserva parlamentar) estende-se “se não porventura em todos os aspectos do seu estatuto e regulamentação, ao menos naqueles (…) que são verdadeiramente significativos e determinantes da sua caracterização como garantia constitucional”. Esta posição é também adoptada, a nível doutrinário, por Vieira de Andrade, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Jorge Bacelar Gouveia, Jorge Reis Novais e Maria Lúcia Amaral. Salienta ainda Sérvulo Correia que “proceder de modo contrário introduziria uma intolerável discriminação entre direitos fundamentais que, em princípio, deveriam gozar do mesmo estatuto, não se encontrando na sua diferente localização no articulado constitucional argumento bastante”.   
    Importa contudo referir que, apesar da supracitada divergência doutrinária, deve entender-se que o direito de propriedade, como direito análogo aos Direitos, Liberdades e Garantias, passa a gozar de aplicabilidade directa e a vincular directamente as entidades públicas e privadas. Para além disto esta equiparação doutrinária atribui ao direito de propriedade um regime reforçado de protecção para casos de restrições, pois os mesmos só podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Finalmente importa ainda indicar que as leis restritivas de Direitos, Liberdades e Garantias têm ainda de revestir carácter geral e abstracto, não podendo ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais que acolhem esta natureza de direitos.
    O artigo 62º da CRP recorta, no direito de propriedade, uma pretensão jurídica individual (direito subjectivo) a favor de determinados titulares, assegurando o correspondente dever jurídico de abstenção por parte dos destinatários passivos, o que, desde logo, consubstancia a ideia de aplicabilidade directa deste direito, de determinabilidade constitucional, e não meramente legal, e de execução por si mesmo. Outro indício da admissibilidade deste direito como análogo aos Direitos, Liberdades e Garantias é o facto de poder ser defendido judicialmente de modo autónomo, pois o titular de um bem tem o direito de accionar judicialmente o destinatário passivo que não respeitou o dever de não-agressão, e a presença de qualquer direito subjectivo impõe, desde sempre, um determinado grau de protecção judicial. Este é assim um direito cuja função primária é a defesa de um certo bem, auto-impondo-se também como direito negativo no sentido em que atribui um dever de abstenção aos destinatários passivos. 
    O Código Civil dedica também alguns preceitos a este direito. Nos artigos 1302º a 1438º define o seu objecto e conteúdo estabelecendo as formas de aquisição e fixando regras específicas no que toca à propriedade de imóveis, à propriedade das águas e ao regime de compropriedade. De salientar o artigo 1305º onde se estabelece que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com as restrições por esta admitidas.

As restrições ao direito de propriedade

   Uma abordagem às restrições ao direito de propriedade exige uma distinção prévia entre estas situações e os casos de condicionamento do direito e de colisão entre direitos fundamentais. Uma restrição é uma amputação ou compressão do conteúdo essencial de um direito, ou seja, das faculdades destinadas à obtenção ou fruição de um bem jurídico enquanto que o condicionamento de um direito é apenas uma exigência adicional de certos requisitos a preencher para que seja possível o exercício de certo direito. Neste sentido, Vieira de Andrade considera que existem normas condicionadoras do seu exercício (direito de propriedade), que estabelecem imposições mas não afectam o seu conteúdo. Já não se trata aqui de descortinar os limites internos do direito fundamental em questão mas sim de avaliara validade das limitações externas, impostas a posteriori pelo legislador ordinário, normalmente para a protecção de outros valores e interesses.
    Quanto à colisão de direitos, esta não se confunde com as restrições, pois traduzem-se em conflitos que surgem quando dois direitos têm de ser exercidos ao mesmo tempo, mas que se resolvem de acordo com a concordância prática, ou seja, os custos do conflito devem ser distribuídos evitando assim que um direito tenha de ceder totalmente face ao outro. Assim esta forma de resolução impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito para que, tendo igual valor constitucional, não tenha de se optar pelo sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionalismos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens. De salientar ainda que este método de resolução de situações de colisão de direitos só será utilizada na falta de lei harmonizadora, ou seja, na falta de uma norma que prossegue uma tarefa de conciliação (a posteriori) de vários direitos ou bens constitucionalmente protegidos e que soluciona em abstracto este conflito existente. Em comparação a restrição implica exactamente o contrário pois, havendo dois direitos em conflitos, vai restringir-se um na totalidade para possibilitar o pleno exercício do outro. Para este estudo vou centrar-me apenas nesta concepção de restrições à propriedade pois, sendo a forma mais intensa de limitação da mesma, será a que traz mais dificuldades.  
    Antes de mais cumpre referir que é entendimento pacífico na doutrina constitucional que, apesar da relevância que têm nas ordens jurídicas democráticas, os direitos fundamentais não são absolutos pois a necessidade de protecção de outros bens jurídicos diversos, também revestidos de envergadura constitucional, pode justificar uma restrição.
    As restrições a direitos podem ainda ser gerais, no sentido em que se aplicam a todos, ou especiais, aplicando apenas a uma classe específica de destinatários. Para além desta classificação, e tendo em conta especificamente o direito de propriedade, podem ainda ser de interesse público ou de interesse privado, pretendendo-se no primeiro caso harmonizar o direito de propriedade com o interesse geral da comunidade, e no segundo caso possibilitar o exercício simultâneo ou conjunto de diversos direitos de propriedade. As restrições de direito público são impostas pela função social da propriedade (por exemplo a expropriação por utilidade pública, a requisição e as servidões administrativas) enquanto que as de direito privado são impostas por razões de ordem particular (por exemplo as diversas servidões previstas no Código Civil nas relações de vizinhança).
    As restrições expressamente previstas no nº 2 do artigo 62º da CRP são a requisição e a expropriação por utilidade pública. Cabe assim uma explicação muito sucinta de cada uma destas realidades. A requisição corresponde a um direito de utilização de bens de particulares em benefício do poder público, concretizando-se assim numa limitação ao direito de propriedade pois implica a perda temporária da posse. Já a expropriação por utilidade pública é, segundo Menezes Cordeiro, o evento pelo qual se extinguem direitos reais sobre bens imóveis, constituindo-se concomitantemente novos direitos na titularidade de pessoas que se entende prosseguirem o interesse público, mediante o pagamento de justa indemnização. Já Marcello Caetano, define a expropriação por utilidade pública como uma relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens num fim específico de utilidade pública, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa cujo cargo esteja orientado para a prossecução desse fim, cabendo a este pagar ao titular dos direitos extintos a justa indemnização.
     A admissibilidade destas duas restrições não é questionada pelo Tribunal Constitucional, devido à sua previsão constitucional expressa, mas tem-se discutido a amplitude do conceito de expropriação e também os critérios de fixação da indemnização compensatória. Há uma corrente doutrinária, encabeçada nomeadamente por Gonçalo Capitão, que tende a alargar o conceito de expropriação a diversas formas de limitação do direito de propriedade, que conferem direito a indeminização ao proprietário.
    Muito discutida é a admissibilidade de outras limitações. É certo que são admitidas restrições implícitas mas estas têm de ter como base o texto constitucional e neste caso nada se diz sobre a possibilidade de o direito em questão ser afectado por outras limitações que não sejam as supracitadas. Todavia tal possibilidade é aceite, de forma pacífica pela doutrina. Jorge Miranda frisa, a este propósito, que da circunstância do artigo 62º da CRP não estabelecer outras restrições à propriedade privada não pode extrair-se que elas sejam vedadas pois qualquer Constituição positiva, ainda que imbuída de respeito pela propriedade, tem de admitir que a lei declare outras restrições – até por não poder prevê-las ou inseri-las todas no texto constitucional. Também em alguma jurisprudência se encontra patente, embora de forma implícita, este entendimento pois refere-se que a Constituição se limita a fixar as condições e as consequências daquelas restrições. Tal orientação possui ainda suporte legal no artigo 1305º do Código Civil que, ao estabelecer o princípio de que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições nela impostas, abre caminho a legislação que condicione o exercício do seu direito de propriedade, sendo que nada mais lhe resta senão acatar estas restrições consignadas no ordenamento jurídico.
    É no âmbito destas restrições não expressamente previstas na CRP que surgem muitas das restrições ao direito de propriedade com fundamente em questões ambientais. Neste domínio são frequentes as decisões que admitem o condicionamento do direito de propriedade em função dos interesses de protecção ambiental e do ordenamento território. Na decorrência desta ideia cabe então a análise da função ecológica do referido direito.
 
Função Ecológica do Direito de Propriedade
 
    A crescente preocupação com as questões ambientais traduziu-se, no que respeita ao direito de propriedade, num entendimento em que este desempenha, para além da função social (reconhecida à muito), explicitada em momento anterior, também uma função ecológica. Acerca da crescente importância da questão ambiental Gomes Canotilho considera que se tem caminhado no sentido do reforço da vinculação social da propriedade por motivos ecológicos, que se desenha com nitidez a partir dos finais dos anos sessenta e que os interesses difusos dos particulares quanto à fruição do bem ambiente são o exemplo mais característico de interesse com carácter geral (não público nem particular) e de fruição colectiva protegida pela Constituição. Apesar deste entendimento doutrinário, a nível jurídico, nada se diz quanto a esta função ecológica do direito de propriedade, o que não é de estranhar se atendermos ao facto de o Código Civil ter sido aprovado em 1966 e nessa altura, como é óbvio, não se colocavam com a actual acuidade os problemas e as preocupações da protecção do ambiente. É certo que os preceitos legais não podem ser interpretados de forma isolada, pelo que a doutrina tem entendido que, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e as condições específicas do tempo em que são aplicados, esta função ecológica da propriedade não pode ser, de forma alguma, negada. Isto porque, como salienta Gomes Canotilho, o sistema português tem vindo a sofrer, desde 1966 até ao presente, uma nova evolução no sentido da valorização da função social do direito de propriedade em detrimento dos princípios individualistas extremos que, na tradição romanista, faziam daquele direito um poder quase absoluto e ilimitado de usar e abusar das coisas que a cada um pertencessem enquanto proprietários. Ademais são cada vez mais as situações em que esta crescente preocupação ambiental faz como que estes direitos fundamentais entram intrinsecamente em conflito, o que exige uma ponderação de interesses, levada a cabo no caso concreto.
    A unidade do sistema jurídico implica, hoje, que se reconheça uma vertente ambientalista no direito de propriedade. Assim entende-se que os proprietários continuam a poder utilizar, fruiu e dispor livremente dos seus bens mas estão obrigados, como os demais, a defender o ambiente e a proteger a natureza, não devendo esquecer que, de acordo com os princípios gerais, o seu direito de propriedade termina onde começa o direito dos outros cidadãos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, já que ambos estão consagrados na CRP como direitos fundamentais. Para Marcelo Rebelo de Sousa as exigências do urbanismo e do ordenamento do território, bem como a defesa e fruição do ambiente e do património cultural, tem feito surgir compressões de diversos tipos a algumas faculdades e componentes do direito de propriedade, compressões essas cuja constitucionalidade deve ser apurada com rigor.
    Importa ainda analisar se esta função ecológica da propriedade e consequente estreitamento de poderes é realizada pela própria Constituição ou se, pelo contrário, a Lei Fundamental admite todas as formas de exercício dos direitos fundamentais em causa, reservando para a lei a tarefa de promover, sendo caso disso, e dentro de determinados condicionalismos, a sua restrição, ou seja, importa saber se esta função ecológica do direito de propriedade é uma peça estrutural deste direito ou se, pelo contrário, se trata antes de um elemento externo de natureza finalista, manifestado pela lei, para o qual o direito em apreço tende. Esta distinção pode parecer meramente teórica mas a verdade é que o seguimento de um ou outra posição trará consequências práticas muito distintas. Seguindo o primeiro entendimento a principal consequência é o entendimento de que as leis que determinam vínculos ambientais ou ecológicos assumem sempre um sentido meramente conformador, aclarador dos limites constitucionalmente construídos em consideração da tutela da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural, excepto quando as agressões ao direito fundamental sejam arbitrárias ou infundadas. Para além do supracitado implica ainda que o regime especial constitucionalmente inerente às restrições de Direitos, Liberdades e Garantias seja apenas reservado para os casos de manifesta violação do conteúdo essencial do direito de propriedade, sendo que os restantes casos de intervenção legislativa escapam, consequentemente, por não serem configurados como intervenções restritivas, mas antes conformadoras ou concretizadoras do direito positivado no artigo 62º da CRP, ao apertado regime especial configurado no artigo 18º, nºs 2 e 3 da CRP. Quanto à segunda posição a consequência a realçar é que assim toda e qualquer intervenção legislativa impositora de vínculos, designadamente de natureza ambiental, seja susceptível de vir a ser encarada com um sentido claramente restritivo de um direito análogo aos Direitos, Liberdades e Garantias. Certo é que a doutrina e a jurisprudência maioritária têm vindo a considerar, desde há uma década,  que a função ecológica da propriedade é um elemento estrutural do conteúdo constitucional deste direito, ou seja, admite-se que este direito está previamente limitado na sua origem pelo facto da função social-ecológica que é chamado a desempenhar no actual quadro de Estado de Direito Social, e que pertence ao seu conteúdo constitucional pré-configurado.
     A nível sistemático é interessante notar que o direito de propriedade aparece inserido no título da Constituição onde igualmente se encontra consagrado o direito ao ambiente, embora obviamente em capítulos diferentes, já que, como supracitei, o primeiro é enquadrado no grupo dos Direitos Económicos e o segundo no grupo dos Direitos Sociais.
    Consequentemente, o direito do ambiente apresenta uma dignidade constitucional superior ao direito de propriedade privada, que é sempre pré-configurado como direito limitado, pelo que se tem entendido que em caso de colisão de direitos fundamentais deve prevalecer o direito de interesse público. Em conclusão, o entendimento é que as normas em matéria de conservação da natureza e dos recursos naturais não podem ser violadas pelo normal exercício dos direitos de uso e fruição inerentes ao direito de propriedade.
 
Restrições ao Direito de Propriedade para Criação de Áreas Protegidas
 
     Uma área protegida pode ser definida, entre nós, como uma zona territorialmente delimitada, em que qualquer intervenção humana está condicionada, com vista a conceder-lhe um estatuto legal de protecção adequado à manutenção da biodiversidade, dos ecossistemas e do património geológico, bem como à valorização da paisagem.
     Estas áreas podem ser de âmbito nacional, regional-local ou privado. As áreas protegidas de âmbito nacional são áreas criadas e geridas por uma autoridade nacional, podendo, no entanto, ser propostas por quaisquer entidades públicas ou privadas, nomeadamente Autarquias Locais e Organizações Não-Governamentais de Ambiente. Estas áreas podem tomar a designação de Parque Nacional, Parque Natural, Reserva Natural, Paisagem Protegida ou Monumento Natural, consoante as especificidades ambientais de cada área. As áreas protegidas de âmbito regional-local são áreas criadas e geridas por Associações de Municípios ou pelos próprios Municípios, e podem tomar as designações supracitadas, todas acrescentadas de “regional” ou “local”, consoante os casos. Quanto às de âmbito privado são áreas propostas e geridas pelos proprietários, através dos procedimentos previstos na Portaria n.º 1181/2009, de 7 de Outubro, sendo a designação de Área Protegida Privada sempre atribuída pela autoridade nacional.
     Importa então distinguir as várias tipologias admissíveis de áreas protegidas:
1)   Parque Nacional: área que contenha maioritariamente amostras representativas de regiões naturais características, de paisagens naturais e humanizadas, de elementos de biodiversidade e de sítios de interesse geológico, com valor científico ou ecológico. Assim visa-se a protecção dos valores naturais existentes, conservando a integridade dos ecossistemas, tanto ao nível dos elementos constituintes como dos inerentes processos ecológicos, e a adopção de medidas compatíveis com os objectivos da sua classificação;
2)   Parque Natural: área que contenha predominantemente ecossistemas naturais ou seminaturais, onde a preservação da biodiversidade a longo prazo possa depender de actividade humana, assegurando um fluxo sustentável de produtos naturais e de serviços. Neste sentido querem proteger-se os valores naturais existentes, contribuindo para o desenvolvimento regional e nacional, através da adopção de medidas de sustentabilidade;
3)   Reserva Natural: área que contenha características ecológicas, geológicas e fisiográficas, ou outro tipo de atributos com valor científico, ecológico ou educativo, e que não se encontre habitada de forma permanente ou significativa. Mais uma vez esta classificação visa a protecção dos valores naturais existentes, assegurando que as gerações futuras terão oportunidade de desfrutar e compreender o valor das zonas que permaneceram pouco alteradas pela actividade humana durante um prolongado período de tempo, e a adopção de medidas compatíveis com os objectivos da sua classificação;
4)   Paisagem Protegida: área que contenha paisagens resultantes da interacção harmoniosa do ser humano e da natureza, e que evidenciem grande valor estético, ecológico ou cultural. O principal objectivo inovador é o realce da identidade local;
5)   Monumento Natural: ocorrência natural contendo um ou mais aspectos que, pela sua singularidade, raridade ou representatividade em termos ecológicos, estéticos, científicos e culturais, exigem a sua conservação e a manutenção da sua integridade. Esta classificação visa essencialmente a preservação destes valores naturais, com as suas características originais e em consonância com as zonas imediatamente circundantes;
6)   Área Protegida Privada: estas podem ser terrenos privados não incluídos em áreas protegidas onde se regista a existência de valores naturais que apresentem, pela sua raridade, valor científico, ecológico, social ou cénico, uma relevância especial que exija medidas específicas de conservação e gestão. Assim o respectivo proprietário, mediante um processo especial de candidatura, efectua um pedido, nos termos supracitados, para que a autoridade reconheça na sua propriedade tal classificação.
 
     Entre nós são áreas protegidas são actualmente 44 de onde se destacam, nomeadamente, a Arrábida, as Berlengas, a Serra da Malcata, o Estuário do Tejo, a Serra do Açor, a Serra de Montejunto, entre muito outras áreas relevantes (ver mapa abaixo).
 

     A criação destas áreas protegidas foi inicialmente regulada pelo Decreto-Lei nº 613/76, de 27 de Julho. Actualmente é regulada pelo Decreto-Lei nº 142/2008, de 24 de Julho, principalmente no seu artigo 10º e seguintes. Neste diploma podemos encontrar essencialmente a condições para a criação de áreas protegidas e a consagração das tipologias supracitadas, com a correspondente explicitação em termos de regime jurídico.
     A criação destas áreas, por mais meritória que seja (que o é, sem margem para dúvidas), implica, na prática, uma fortíssima restrição ao direito dos proprietários dos terremos ou edifícios situados dentro destas zonas. É indiscutível que a amplitude e o alcance das restrições diverge de caso para caso, em função dos objectivos próprios de cada área, mas em todos estes é inegável que o proprietário acaba por ver parte do seu direito, previamente estabelecido, ser amputado por um acto de autoridade. Nesta decorrência Gomes Canotilho distingue entre as actividades absolutamente proibidas após a classificação como área protegida e aquelas que podem ser exercidas mediante autorização dos órgãos de gestão das áreas classificadas. De uma forma geral, acaba porém por concluir que, há sempre actividades humanas que são completamente interditas, nomeadamente aquelas que possam hipoteticamente prejudicar significativamente o equilíbrio natural da zona, como por exemplo, construções de complexos habitacionais, turísticos ou industriais. Parece assim de admitir que, para este autor, as restantes actividades, desde que não prejudiquem a zona nas condições supra-referidas, são admissíveis desde que obtenham uma autorização especial para o efeito.
     Na minha opinião estas restrições, tal como todas as outras, devem ter na sua base uma particularmente intensa ponderação dos interesses em causa, isto é, só devem ser consideradas admissíveis se fundamentadas em diversos critérios formais e matérias.
     Antes de mais parece-me que podemos afirmar que estas restrições têm como fundamento o interesse público no sentido em que um interesse geral da comunidade se sobrepõe a um direito individual, neste caso o direito de propriedade. Porém parece certo que esta prevalência depende de uma ponderação prévia dos interesses em causa e só deve operar se não for possível atingir o fim público com outra solução menos danosa para o proprietário (na expressão de Fausto de Quadros tem de ser o acto necessário para a obtenção daquele fim e tem de ser reconhecido pela lei ou por prévio acto administrativo (…) não pode ser um acto que hipoteticamente o seja (necessário), sob pena de arbítrio). Estamos aqui perante um juízo de proporcionalidade (artigo 266º, nº 2 da CRP e artigo 5º, nº 2 do CPA), ou seja, a restrição deve ser adequada (os meios utilizados devem ser os mais adequados aos fins e/ou objectivos), necessária (deve ser a acção menos gravosa para os interesses dos particulares e a menos lesiva dos seus direitos e interesses legítimos) e equilibrada (equilíbrio estabelecido entre a acção e o resultado obtido). Estas estão também submetidas ao princípio da legalidade (para Gomes Canotilho este principio funciona como limite e fundamento), ou seja, têm de ser realizadas com a correcta observância dos meios e formas procedimentais previstas para o efeito. Parece também certo que estas restrições não podem ser utilizadas como forma de privilegiar, beneficiar ou prejudicar qualquer dos sujeitos activos ou passivos, mas sim devem ser realizadas da maneira que melhor atender ao interesse público, logo ficam igualmente sujeitas ao princípio da igualdade (que, como veremos a seguir, toma especial importância na questão da justa indemnização e dos critérios da sua realização) – artigo 13º da CRP.    
     A propósito destas restrições ao direito de propriedade cabe ainda fazer referência à possibilidade de compensação dos proprietários. A este nível importa distinguir entre limitações internas (estas têm caracter geral e abstracto e são impostas por regras de vizinhança ou por deveres colectivos) e limitações externas (são intervenções do Estado na propriedade privada, que geram restrições a algumas faculdades do direito em causa). A doutrina tem, na generalidade, entendido que estas restrições por questões ambientais são limitações internas, que decorrem da função social socio-ecológica da propriedade.
     Um entendimento generalizado destas situações levar-nos-ia a dizer que qualquer proprietário que visse o seu direito de propriedade ser afectado, neste caso por questões ambientais, teria todo o direito a uma justa compensação. Porém a doutrina diverge quanto a esta questão, quer nas situações abrangidas quer no fundamento da obrigação.
     A doutrina maioritária entende que, em caso de restrições ao direito de propriedade, deve haver responsabilidade do Estado por actos lícitos, seja qual forma a forma pela qual esta é realizada. Neste sentido Gomes Canotilho refere que está em causa o princípio da igualdade perante os encargos públicos logo tem de operar a responsabilidade objectiva do Estado. Assim o Estado intervém de modo legítimo ou lícito nesse mesmo direito (direito de propriedade), pois de uma forma geral a Constituição autoriza que determinados direitos sejam coactivamente afectados ou até mesmo transferidos, desde que tal medida se revele necessária, adequada e proporcional à realização do interesse público superior (…) mas pode provocar danos ou lesões na esfera jurídico-patrimonial do individuo pelo que não deve deixar de ser responsabilizado por actos lícitos, seja qual for a forma de afectação utilizada. No mesmo sentido mas como um fundamento distinto, Rui Medeiros, considera que o dever de indemnizar as lesões que determinada lei provoca na propriedade, encontra o seu fundamento na garantia constitucional da propriedade privada, prevista no artigo 62º da CRP, pelo que assim sendo, a responsabilidade do Estado legislador pressupõe o sacrifício licito desse direito.
     Outros autores consideram que as restrições impostas ao proprietário com a finalidade de preservar o meio ambiente, nos moldes em que estão estabelecidas na lei, nem sempre são indemnizáveis. Numa posição que, como o devido respeito, me parece um pouco extremista, Rogério Soares nega a ressarcibilidade dos vínculos impostos pelo Estado na propriedade privada, qualquer que seja a sua natureza, pelo facto de considerar o direito de propriedade privada como um direito ao qual não é inerente o “ius aedificandi”, faculdade essa concedida pelo Estado quando autoriza o cidadão a intervencionar determinado terreno. Por outro lado Alves Correia entende que só há ressarcibilidade dos vínculos quando a actuação do Estado se consubstancia em medidas expropriativas, não admitindo tal compensação nos casos em que apenas é restringido o uso dos solos. Pode dizer-se que este último entendimento tem sido seguido por parte substancial da doutrina opositora. Assim podemos concluir no sentido em que, para esta doutrina minoritária, o proprietário afectado no seu direito só terá direito a uma compensação por parte do Estado se houver um total esvaziamento do conteúdo essencial mínimo da propriedade, ou seja, se a restrição puser em causa a exclusividade típica deste direito, o direito de alienação ou se inviabilizar, integralmente, o uso e fruição do bem (o caso da expropriação).
     Na minha opinião, e como o devido respeito por todas as supracitadas opiniões, o melhor entendimento quanto a esta questão é o de admitir que o proprietário deve, em princípio, ser compensado pela restrição operada ao seu direito, seja qual for a forma pela qual esta é operada. Embora seja a indicação constitucional, parece-me excessivo só admitir a justa indeminização do proprietário nos casos de expropriação (se entendida em sentido restrito), pois, na maioria das formas de restrição utilizadas, este vê certas faculdades (sejam muitas ou poucas) do seu direito serem amputadas e nada pode fazer quanto a isso. Assim, na minha opinião, faz algum sentido a posição daquela doutrina que opta pela indemnização do proprietário seja qual for a forma de restrição utilizada, ou seja, não podendo este reagir quanto às agressões estaduais ao seu património pessoal (a não ser que estas se consubstanciem no desrespeito de alguns dos requisitos ou vectores que supramencionei), deve pelo menos ser justamente compensado por tais actos.
     No caso específico da criação de áreas protegidas existem porém algumas especificidades. Fala-se correntemente em “vinculação situacional” da propriedade no sentido em que havendo uma coisa, designadamente, um imóvel, objecto de propriedade privada que se situa dentro de uma área com características especiais – ambientais, geológicas, etc. – esta circunstância, por si só, determina a restrição ou o condicionamento das faculdades inerentes a tal direito, em atenção à especial necessidade de protecção e valorização do património dessa respectiva área. Nestas situações, pode afirmar-se que a situação factual dos terrenos condiciona o seu uso e utilização, ou seja, obriga o proprietário a não utilizar ou a renunciar a determinadas utilizações que seriam, em princípio, admissíveis, por força das especiais exigências de preservação ambiental. A título de exemplo pode destacar-se, quanto à admissibilidade desta vinculação situacional, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 329/99 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2012, no processo nº 11214/05.7TBMTS.P1.S1.
     Ainda na decorrência desta ideia identificam-se casos em que o proprietário não tem direito a uma indemnização. Considera-se que, num situação em que, no plano factual, o proprietário não pode efectivamente exercer o seu direito de propriedade em plenitude, por força de circunstâncias naturais, não há uma verdadeira amputação dessa faculdade do seu direito e, consequentemente, não haverá lugar a indemnização. Por exemplo num caso em que o proprietário não tem, na realidade, o direito de edificar, em decorrência de circunstâncias naturais impeditivas, o facto de uma actuação estadual, devidamente fundamentada, lhe retirar essa titularidade não lhe dá direito a indemnização. Quanto ao exemplo suscitado importa ainda salientar que a inclusão do ius aedificandi no direito de propriedade não é unânime. Contra esta inclusão argumenta-se, entre outras coisas, que este direito nasce dos actos da Administração Pública, que surge para adequar o direito à realidade para a planificação integral do território nacional e que, à luz do conteúdo do direito de propriedade plasmado na CRP e do princípio da unidade do sistema jurídico, outra não podia ser a solução. A favor da sua inclusão como uma das faculdades do direito de propriedade manifestam-se essencialmente os autores jus-civilistas que, com base nos artigos 1305º, 1344º, 1524º, 1525º e 1534º do CC, argumentam que o direito a construir continua, em abstracto, a compor o direito de propriedade (perspectiva jurídico-privada). Porém esta exposição serve apenas como complemento pois nada altera ao exemplo dado.
     No fundo a solução que determina, para estas situações, a não exigência de uma indemnização acaba por se basear nas condições factuais do exercício do direito, o que faz algum sentido pois, caso contrário, este proprietário estaria a ser beneficiado por esta indemnização sem que, na verdade, estivesse a sofrer danos oriundos da actuação do Estado. Isto porque a restrição ao seu direito advém da natureza intrínseca das coisas.
     Antes de concluir cabe-me ainda fazer um esclarecimento quanto ao objecto deste estudo. Analisei as restrições ao referido direito sempre numa vertente privada, por ser a que mais discussões introduz, mas é certo que existem casos em que é a propriedade pública a ceder face às preocupações ambientais. A propriedade pública caracteriza-se, segundo Marcello Caetano, por: 1) o titular do direito é uma pessoa colectiva de direito público; 2) o direito de propriedade é exercido para a produção do máximo de utilidade pública das coisas; 3) o uso das coisas públicas traduz-se na utilização por todos ou em benefício de todos; 4) o titular do direito exerce os seus poderes em relação a terceiros por meio de acto administrativos, usando a sua própria autoridade e independência. Tendo em mente esta definição parece certo que, nestas situações, as restrições ao direito de propriedade não são tão problemáticas pois as preocupações ambientais estão intimamente relacionadas com os poderes de autoridade que o Estado possui (e que mais nenhum proprietário possui) e com a sua capacidade de actuação, logo está apenas em causa a ponderação de interesses da colectividade, que por este devem ser prosseguidos.
 
     Em conclusão importa referir que se tem generalizado o entendimento de que, cumprindo as decisões requisitos, nomeadamente, de proporcionalidade, legalidade e igualdade, o direito ao ambiente prima sobre o direito de propriedade. Não só a doutrina como também a jurisprudência (por exemplo, Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 44/99, nº 194/99 e nº 639/99 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/09/2011 no processo nº 111/09.7TBMRA.E1.S1) têm vindo a admitir a referida prevalência.    
     Não podemos mais falar no direito de propriedade como um direito absoluto, à boa maneira do liberalismo, pois existem agora no nosso ordenamento jurídicas inúmeras disposições limitativas deste direito. No que se refere às questões ambientais é hoje imperativo que a procura por um ambiente sadio e ecologicamente sustentável e equilibrado, assim como o respeito valores naturais existentes, é essencial para o bem-estar da comunidade, nem que para isso tenham de ser sacrificados interesses individuais.

     Penso ainda que é importante referir que o direito de propriedade, para além das funções analisadas anteriormente, está também de certa forma vinculado ao princípio da solidariedade intergeracional, na medida em que existe a necessidade de assegurar um desenvolvimento sustentável que passa por uma política de responsabilidade ética que a todos nos vincula. As gerações futuras não são titulares de direitos na medida em que são ainda inexistentes mas, no entanto, esta ideia passa por uma forma de auto-responsabilização, ou seja, um dever actual de todos de respeito pelas gerações vindouras.

 

Bibliografia:
 
- CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Protecção do Ambiente e Direito de Propriedade Crítica de Jurisprudência Ambiental. Coimbra: Coimbra Editora, 1995;
- FERNANDEZ, Maria Elizabeth Moreira, Direito ao Ambiente e propriedade privada: aproximação ao estudo das estruturas e das consequências das “Leis-Reserva” portadoras de vínculos ambientais. Coimbra: Coimbra Editora, 2001;
- LEÃO, Maria do Socorro Cabral, Propriedade privada e dano ambiental - Relatório de estágio de mestrado em Ciências Jurídico-políticas (Direito Privado do Ambiente). Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2011;
- MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV - Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2012;
- PINTO, Ana Luísa Santos, As restrições ao direito de propriedade não expressamente previstas na Constituição - Relatório de mestrado para a cadeira de Direitos Fundamentais. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004;
- PIRES, Luís Manuel Fonseca, Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006;
- QUADROS, Fausto de, Direito das expropriações, direito do urbanismo e direito do ambiente: algumas questões fundamentais. Lisboa: Separata da Revista Jurídica do Urbanismo e Ambiente, nº 4, 1996;
- REIS, João Pereira, Temas de direito do ambiente. Lisboa: Ministério do Planeamento e da Administração do Território, 1989;
- REJANI, Juliana Lima, Restrições ao direito de propriedade em favor do meio ambiente e as formas de compensação ao proprietário - Relatório de estágio de mestrado em Ciências Jurídico-políticas (Direito Civil – Direito do Ambiente). Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2011;
- SILVA, Vasco Pereira da, Verde Cor do Direito. Lisboa: Edições Almedina, 2002;
- SILVA, Hugo Felipe Rodrigues da, Expropriação para fins ambientais - Relatório de estágio de mestrado em Ciências Jurídico-políticas (Direito Administrativo do Ambiente). Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009;
- SYLVESTRE, Fábio Zech, O direito fundamental à propriedade em face ao interesse público de protecção ambiental – Relatório de estágio de mestrado em Ciências Jurídico-políticas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009;
- WACHOWICZ, Marcos e MATIAS, João Luís Nogueira, Propriedade e meio ambiente: da inconciliação à convergência. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001.
 
Webgrafia:
 
 

Filipa Santos, nº 19603

Sem comentários:

Enviar um comentário