sexta-feira, 17 de maio de 2013

O POUCO RUÍDO QUE SE FAZ À VOLTA DE TANTO RUÍDO




A prevenção do ruído em Portugal mereceu a devida contemplação legislativa em 1987 com a publicação da Lei de Bases do Ambiente aprovada pela Lei n.º 11/87 de 7 de Abril que no seu art.º 22º e sob a epígrafe “Ruído” dispõe o seguinte:
1 - A luta contra o ruído visa a salvaguarda da saúde e bem-estar das populações e faz-se através, designadamente:
a) Da normalização dos métodos de medida do ruído;
b) Do estabelecimento de níveis sonoros máximos, tendo em conta os avanços científicos e tecnológicos nesta matéria;
c) Da redução do nível sonoro na origem, através da fixação de normas de emissão aplicáveis às diferentes fontes;
d) Dos incentivos à utilização de equipamentos cuja produção de ruídos esteja contida dentro dos níveis máximos admitidos para cada caso;
e) Da obrigação de os fabricantes de máquinas e electro-domésticos apresentarem informações detalhadas, homologadas, sobre o nível sonoro dos mesmos nas instruções de uso e facilitarem a execução das inspecções oficiais;
f) Da introdução nas autorizações de construção de edifícios, utilização de equipamento ou exercício de actividades da obrigatoriedade de adoptar medidas preventivas para eliminação da propagação do ruído exterior e interior, bem como das trepidações;
g) Da sensibilização da opinião pública para os problemas do ruído;
h) Da localização adequada no território das actividades causadoras de ruído.
2 - Os veículos motorizados, incluindo as embarcações, as aeronaves e os transportes ferroviários, estão sujeitos a homologação e controle no que se refere às características do ruído que produzem.
3 - Os avisadores sonoros estão sujeitos a homologação e controle no que se refere às características dos sinais acústicos que produzem.
4 - Os equipamentos electro-mecânicos deverão ter especificadas as características do ruído que produzem.
Volvidos dois meses, ou seja a 24 de junho é publicado o Decreto-Lei nº 251/87, que aprovou o primeiro regulamento geral sobre o ruído, que foi sofrendo ao longo dos tempos diversas alterações, designadamente com a transposição da Directiva nº 2002/49/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de junho, até que entra em vigor o Decreto-Lei nº 9/2007 de 17 de janeiro que atualiza e confere a coerência necessária ao regulamento geral do ruído.
No âmbito do direito civil, o art.1346ºdo Código Civil dispõe que “O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam”, embora esta disposição tenha sido concebida para defesa do direito de propriedade, a verdade é que a doutrina tem procurado alargar o âmbito de proteção aqui conferido a outros direitos, tais como aos direitos de personalidade dos habitantes do prédio onde ocorrem designadamente ruídos, constituindo assim um importante instrumento para a defesa ambiental.
A poluição sonora “convive” com outros tipos de poluição como a poluição atmosférica, das águas e dos solos, sendo que em todas elas existe em comum o facto de haver uma interferência de origem antropogénica com efeitos negativos no ambiente e nos seres vivos. Acontece que, enquanto a poluição atmosférica, das águas e dos solos caracterizam-se pela contaminação dos respetivos meios com substâncias prejudiciais à vida e são por isso quantificáveis na razão da quantidade dessas substâncias presentes no meio, a poluição sonora, não deixa resíduos, existindo apenas no momento em que está a ser produzida.
Pelo referido motivo, a poluição sonora é muitas vezes referida com alguma propriedade, no meu ponto de vista, como um inimigo invisível, ou o parente pobre do ambiente.
Esta “apatia” perante a poluição sonora é extensível às autoridades competentes que frequentemente negligenciam este tipo de agressão ambiental. Os próprios efeitos da poluição sonora são de resto ainda pouco estudados, porque é difícil estudar uma forma de agressão que só se manifesta como resultado de uma exposição prolongada e que por isso sofre a interferência de um elevado número de variáveis difíceis ou impossíveis de controlar.
É indiscutível que a incomodidade sonora tem um elevado grau de subjetividade na perceção do som e na respetiva avaliação
Um dos métodos universalmente aceites para avaliar tecnicamente um ruído é o nível sonoro contínuo equivalente (LAeq) que representa a energia sonora média num ambiente, ao longo de um determinado período de tempo e é expresso em decibéis (dB). Esta é uma escala logarítmica, em que se considera a unidade (1 dB) como o valor correspondente ao som mais baixo que o ouvido humano consegue detectar. Por esse facto, 10 dB correspondem a um som 10 vezes mais intenso que 1 dB, 20 dB 100 vezes mais intenso, 30 dB 1000 vezes e assim sucessivamente. A título exemplificativo e para termos uma noção dessa intensidade apresento os seguintes dados:
Origem de som
Intensidade do som (dB) (aproximada)
Aragem nas folhas de uma árvore
10
Conversa numa sala de estar
60
Rua movimentada
80
Tráfego urbano em hora de ponta
90
Cortador de relva
90
Martelo pneumático (obras)
100
Buzina de um carro
110
Concerto de rock
120
Avião a baixa altitude após a descolagem
130
Fogo de artifício
140

Partindo do princípio que a OMS (Organização Mundial de Saúde) considera que um som deve ter como limite 50 db (decibéis) para não causar danos no ser humano e a exposição a 120 dB poderá mesmo causar dor ao ouvido humano, então é bastante preocupante verificar com base na tabela supra que qualquer habitante de uma cidade de média ou grande dimensão está diariamente exposto a agressões múltiplas com consequências que poderão ser irreversíveis. O ruído contribui de um modo particular para a degradação da qualidade de vida dos cidadãos. Estudos recentemente efetuados vieram revelar que na Europa morrem por ano 50 mil pessoas devido a doenças cardiovasculares causadas pelo excesso de decibéis que advêm do ruído dos automóveis.
Em Portugal, o tráfego rodoviário expõe mais de 5 milhões de portugueses a níveis de ruído excessivos e considerados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nocivos à saúde, porque acima dos 50 decibéis, como já referi anteriormente.
Uma Associação Portuguesa ligada à defesa do ambiente, realizou no ano transato medições de ruído em alguns locais críticos (rodoviário, ferroviário e aéreo) na cidade de Lisboa. Nas medições de ruído na Avenida Fontes Pereira de Melo, que constitui um dos principais corredores rodoviários de Lisboa, durante um período contínuo de três dias concluiu-se que é durante o período diurno (das 07h-20h) que se verificam os níveis mais elevados de ruído. O LDEN, indicador de ruído diurno-entardecer-noturno, medido ao longo de 24 horas, variou entre os 76,8 dB(A) e os 77,6 dB(A) (máximo é 65 dB(A), quase quatro vezes mais do permitido, considerando que as unidades em causa têm uma escala logarítmica). Já no período noturno, o LN (indicador de ruído noturno) variou entre os 68,8 dB(A) e os 70,4 dB(A), mas o máximo permitido é 55 dB(A). O nível máximo de ruído medido foi de 106 dB(A), um valor considerado preocupante quando comparado com os 120 dB(A), o limiar de dor para o ouvido humano, como já foi antes mencionado.
O efeito nefasto do ruído não depende apenas do tipo de ruído e da sua intensidade, mas também da sua duração e das características da própria pessoa sujeita à poluição sonora. Na verdade, podemos nos sentir incomodados com determinado ruído mesmo que as respetivas medições não acusem intensidade elevada. Como todos sabemos, os adolescentes que utilizam frequentemente os auscultadores não se sentem incomodados com os sons que ouvem. Também há técnicos de aeronáutica que gostam de ouvir o som intenso das turbinas de um avião em plena aceleração, o que não acontecerá certamente com os moradores em áreas por ele sobrevoadas. Daqui decorre, que a incomodidade do ruído é influenciada pela idade do indivíduo, o seu estado emocional, os gostos, as crenças e o modo de vida.
Em termos de incomodidade de ruído, penso que todos nós já vivemos a experiência desagradável de ouvir o gotejar de uma torneira que corresponde a (20 db).       
Recentemente foi divulgado que uma empresa israelita, com um nome muito sugestivo Silentium, dispõe de uma tecnologia que pode reduzir ativamente a poluição sonora através de um fenómeno físico chamado interferência destrutiva. Assim quando as ondas de ruído estão a viajar no espaço, ao serem atingidas com ondas semelhantes com o mesmo volume, a mesma frequência, mas desviadas 180 graus, vão interferir umas com os outras e anular-se. Dizem poder alcançar uma redução completa do espetro de ruído até 10 decibéis.
Por sua vez, o atual regulamento geral de ruído (RGR) define diferentes tipos de ruído nos seguintes termos:
Ruído Ambiente - o ruído global observado numa dada circunstância num determinado instante, devido ao conjunto das fontes sonoras que fazem parte da vizinhança próxima ou longínqua do local considerado;
Ruído de Vizinhança - o ruído associado ao uso habitacional e às atividades que lhe são inerentes, produzido diretamente por alguém ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua responsabilidade que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja suscetível de afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança. A fiscalização deste tipo de ruído compete às Autoridades Policiais;
Ruído particular» o componente do ruído ambiente que pode ser especificamente identificada por meios acústicos e atribuída a uma determinada fonte
sonora;
Ruído residual» o ruído ambiente a que se suprimem um ou mais ruídos particulares, para uma situação determinada;
Diferentemente do anterior regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 292/2000 de 14 de Novembro que referia apenas o período diurno e o período noturno, este regulamento apresenta três períodos de referência (Diurno: das 07h às 20h; Entardecer: das 20h às 23h; Noturno: das 23h às 07h) o que constitui uma alteração significativa. Aquele diploma define ainda que Indicador de ruído diurno-entardecer-nocturno (Lden) o indicador de ruído, expresso em dB(A), associado ao incómodo global, dado pela expressão:
Lden = 10 x log 1/24 (13 x 10 (Ld/10) + 3 x 10 ((Le+5)/10) + 8 x 10 ((Ln+10)/10))
Em que Ld «o indicador de ruído diurno» é o nível sonoro médio de longa duração, determinado durante uma série de períodos diurnos representativos de um ano;
Em que Le «o indicador de ruído do entardecer» é o nível sonoro médio de longa duração, determinado durante uma série de períodos do entardecer representativos de um ano;
Em que Ln «o indicador de ruído nocturno» é o nível sonoro médio de longa duração, determinado durante uma série de períodos nocturnos representativos de um ano.
Não obstante ser obrigatório nos termos do regulamento a que se vem aludindo que todas as câmaras municipais elaborem mapas de ruído, a realidade é que nem 50% dos nossos municípios encontram se dotados de tal documento. Semelhante cenário também se aplica às infra-estruturas rodoviárias, ferroviárias e aeroportuárias que ainda não apresentaram mapas estratégicos de ruído e planos de ação, como lhes é legalmente imposto.
Como é consabido, o ruído é um tema quase tabu para muitas autarquias, porque as medidas de redução de ruído exigem um esforço para serem incluídas no planeamento municipal e por vezes também são difíceis de aceitar pela própria população (como sejam restrições de tráfego, nomeadamente obrigando a uma redução da velocidade). Assim, o facilitismo tem sido a regra e, em muitos casos, classifica-se como zonas mistas muitas áreas onde se exigia uma classificação como zona sensível.
No que concerne ao reflexo do tema do ruído na área jurisprudencial, o Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de setembro de 2012, relativo ao Processo nº 2209/2008, revela-se muito interessante porque, de um lado, temos a empresa proprietária de um parque eólico, que entre outros argumentos, realça a importância da energia “limpa” que produz através do recurso a uma fonte de energia renovável e por outro temos o proprietário de um prédio vizinho que pugna pela defesa do seu direito à saúde e à qualidade de vida que, segundo o próprio é fortemente penalizado com o ruído das pás dos aerogeradores do referido parque.
A exploração do parque eólico mesmo materializando a defesa do ambiente e tendo cumprido com todos os requisitos legais, deverá ter como limite a ofensa aos direitos de personalidade dos habitantes vizinhos. Como referiu um Juiz do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem “ os ruídos sonoros ou outros que causem danos no domicilio e afetem o bem estar físico do indivíduo atingem a sua vida privada (…)”
Grande parte dos litígios que surgem na área do ruído, contrapõem os direitos de natureza económica como o da livre iniciativa económica e da propriedade privada, que têm proteção constitucional, designadamente nos seus artigos 61º e 62º e o direito ao repouso que se integra nos direitos de personalidade. Neste cenário de direitos conflituantes impõe-se o recurso ao instituto de colisão de direitos (artigo 335º do Código Civil).
 Nestas situações, a jurisprudência, na esteira do pensamento do Prof. Capelo de Sousa, tem entendido que a Constituição da República Portuguesa ao conferir predomínio aos direitos, liberdades e garantias sobre os direitos económicos, sociais e culturais, conduzirá a reputar de prevalecentes os direitos de personalidade e, em concreto, o direito ao repouso. Todavia, o direito hierarquicamente inferior deve ser respeitado até onde for possível e a sua limitação só pode verificar-se na medida em que o imponha a tutela do direito de personalidade. Mesmo assim, defende-se que, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a deteção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjetivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo.
Recentemente foi divulgado de fonte governamental que será publicada brevemente uma nova Lei do Ruído. Ora, penso que mais do que produção legislativa precisamos é de ter uma atitude mais pró-ativa para que os mecanismos legislativos já existentes sejam aplicados e rigorosamente cumpridos.
Refira-se a final que no dia 7 de maio comemora-se o dia do silêncio, que deveria ser devidamente aproveitado para refletirmos um pouco sobre o ruído.
 Na verdade, paradoxalmente no nosso País onde o ruído é tratado com tanta indiferença o maior número de queixas registadas a nível do ambiente são devidas precisamente ao ruído.







Bibliografia:
            www.ensp.unl.pt/dispositivos-de-apoio/cdi/cdi/...de.../1-06-2002.pdf
visao.sapo.pt/ruido-o-parente-pobre-do-ambiente=f646436
Capelo de Sousa, “A Constituição e os Direitos de Personalidade, Estudos sobre a Constituição”, II, 1978, pág. 547


Inês Dantas Andrade Lomelino de Freitas   nº19631

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