Parecer do Ministério Público
MINISTÉRIO PÚBLICO
Procuradoria da Comarca de Lisboa
Parecer Sobre o Processo nº7685/13
Exmo. Sr. Juiz de
Direito do Tribunal
Administrativo de
Círculo de Lisboa
Nos termos do artigo 219.º, n.º1 da Constituição da
República Portuguesa (CRP), artigos 9.º, n.º2 e 85.º do Código de Processo dos
Tribunais Administrativos (CPTA), atendendo à relevância da matéria em causa,
vem o Ministério Público emitir parecer sobre o processo nº7685/13, o que faz
nos termos e com os seguintes fundamentos:
A – DA LEGITIMIDADE
LEGITIMIDADE ACTIVA
A Sociedade Lislixo S.A. é parte legítima nos termos do
art.68º nº1 a) CPTA por alegar ser titular do direito de propriedade e não nos
termos do art.9º CPTA uma vez que se trata duma acção especial com regras
próprias de legitimidade.
A Associação
ambientalista Verdetotal tem
legitimidade para intervir no processo nos termos do art. 68º nº1 b) CPTA
LEGITIMIDADE PASSIVA
O preenchimento do requisito da legitimidade
processual (entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito
da causa e não como uma condição de procedência da acção) não exige a
verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo Autor
porquanto se basta com a alegação dessa titularidade. Daí que para um juízo
positivo sobre a existência da legitimidade passiva basta uma afirmação
fundamentada em factos decorrente da alegação do Autor da titularidade no Réu
dum interesse directo em contradizer, traduzido na utilidade derivada do
prejuízo que da procedência da acção possa derivar. Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte 01505/09.3BEBRG.
Cabe
agora, averiguar assim a legitimidade do Município de Lisboa. Nos seus artigos
235º nº2 e 236º nº1 a CRP, consagra os Municípios como pessoas colectivas
territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de
interesses próprios das populações respectivas. Ainda no artigo 64º nº2 al.m)
da Lei das Autarquias Locais Lei 169/99 de 18 de Setembro compete à Câmara
Municipal, sendo esta um órgão do Município:
assegurar, em parceria ou não com outras entidades públicas ou privadas, nos
termos da lei, o levantamento, classificação, administração, manutenção,
recuperação e divulgação do património natural, cultural, paisagístico e
urbanístico do município, incluindo a construção de monumentos de interesse
municipal.
O princípio
constitucional da descentralização administrativa concretiza-se na Lei-Quadro
de Transferência de Atribuições e Competências para as Autarquias Locais (Lei
n.º 159/99, de 14 de Setembro, doravante LQTACAL) e às autarquias Locais
compete gerir as necessidades e assegurar a prossecução de interesses próprios
de um agregado populacional inserido num determinado território geográfico.
(arts. 1.º e 2.º da LQTACAL).Por isso e na conjunção destes preceitos com o
artigo 10º nº2 do CPTA o Município é assim parte passiva no presente processo.
Em sede da protecção do Ambiente a CRP exige
que o Estado intervenha por meio de organismos próprios (nº2 do artigo
66º).Estes pertencem à Administração, a que podemos chamar Administração
Ambiental, no topo da qual se encontra, naturalmente, o Governo, através do
MAMOT. Na dependência deste Ministério encontram-se o IGAOT e a ERSAR. - MIRANDA, Jorge - Constituição Anotada
Pagina 1355. Assim é também aplicável a estas entidades o referido artigo
10ºnº2 do CPTA sendo desta forma todos os réus partes legítimas.
B- DAS ATRIBUIÇÕES LEGAIS DO MUNICIPIO
Consagração Constitucional
A
Administração Pública é uma realidade vasta e complexa. Na sequência do
princípio de descentralização- que surge com a Constituição de 1976, no
art.267º/2, e só a partir daqui se pode falar numa estruturação descentralizada
da administração pública- pode falar-se de Administração autónoma. Esta
concretiza-se nos termos do artigo 2º nº1 e nº2 da lei 159/99. Trata-se de
entidades que prosseguem interesses próprios das pessoas que as constituem e
que definem autonomamente e com independência a sua orientação e actividade;
estas entidades agrupam-se em três categorias:
•Administração Regional (autónoma)
•Administração Local (autónoma)
•Associações públicas
O substrato destas entidades é de natureza
territorial, no caso da Administração Regional (autónoma) e da Administração
Local (autónoma), e de natureza associativa, no caso das Associações públicas.
A Administração Local (autónoma) é constituída pelas autarquias locais (pessoas
colectivas de base territorial, dotadas de órgãos representativos próprios que
visam a prossecução de interesses próprios das respectivas populações). A
competência dos órgãos e serviços da Administração Local (autónoma)
restringe-se também ao território da respectiva autarquia local e às matérias
estabelecidas na lei. Os Municípios encontram a sua consagração constitucional
no artigo 235º e 236º da CRP.
As atribuições do Município
A Lei 169/99
de 18 de Setembro doravante (LAL) estabelece o regime jurídico do funcionamento
dos órgãos dos municípios- artigo 1º nº1, sendo que nos termos do seu nº2 - os
órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara
municipal. O artigo 64º no nº2 na alínea m, do mesmo diploma que compete á Câmara municipal no âmbito do planeamento e do
desenvolvimento assegurar, em parceria ou não com outras entidades públicas
ou privadas, nos termos da lei, o levantamento, classificação, administração,
manutenção, recuperação e divulgação do património natural, cultural,
paisagístico e urbanístico do município, incluindo a construção de monumentos
de interesse municipal. Verifica-se aqui, uma imposição legal sobre o
Municipio. Ainda quanto às delimitações das atribuições e competências o
artigo 13º nº 1 als.l) e o) atribui aos municípios o domínio do ambiente e
saneamento básico, e ordenamento do território respectivamente. Deste modo, não
parece ser razoável a alegada indiferença do Município de Lisboa relativamente à queixa
da Sociedade LisLixo, porque a lei impõe àquela que actue no domínio referido.
C- DA NATUREZA JURIDICA DOS RESIDUOS
Nos termos do art.202º CC diz-se
coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas. O nº2 do mesmo
artigo estabelece a distinção entre as coisas dentro do comércio e as coisas
fora do comércio sendo estas as que não podem ser objecto de direitos privados,
tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua
natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
Nos termos do art.205º CC os
resíduos podem ser qualificados como coisas móveis na medida em que não constam
do art.204º CC.
Só as coisas corpóreas, móveis ou
imóveis podem ser objecto do direito de propriedade art.1302º CC
O Código Civil não dispõe uma noção
do direito de propriedade mas a doutrina recorre aos seus caracteres
jurídicos enquanto poder directo,
imediato, perpétuo, exclusivo, elástico e, em regra, ilimitado.
Este direito real pode ser
adquirido pelos meios consagrados no art.1316ºCC dos quais a ocupação cujo momento de
aquisição é o da verificação do respectivo facto art.1317º d) CC.
O art. 1318º CC regula o âmbito
objectivo da ocupação enquanto modo de aquisição da propriedade, donde se pode
retirar que as coisas móveis abandonadas são susceptíveis de ocupação.
O abandono consiste no afastamento
da coisa da sua disponibilidade natural, pelo proprietário, mas exige-se ainda
o elemento subjectivo que é a intensão, por parte do proprietário, de demitir
de si o direito que tem sobre a coisa (animus derelinquendi).
Assim quando deposita os resíduos
no ecoponto, o proprietário está intencionalmente a desistir do seu direito de propriedade.
Do acto de abandono resulta
consequentemente a perda do direito de propriedade e a possibilidade da sua
aquisição por terceiro.
A doutrina qualifica o abandono
como um acto jurídico a que devem ser aplicadas analogicamente as regras dos
negócios jurídicos constantes dos arts.295º ss. CC, com necessárias adaptações.
Nestes termos entende o MP que ao
subtrair o lixo dos ecopontos, os catadores de lixo estão a apropriar-se
ilegitimamente de propriedade alheia, constituindo assim um crime de furto
qualificado nos termos do art.203º nº1 CP e o art.204º nº1 b) CP pelo facto dos
resíduos terem sido colocados em lugar destinado ao depósito de objectos e
ainda por constituir nos termos do art.204º nº2 c) CP uma natureza altamente
perigosa uma vez que ao se apropriarem dos resíduos, os catadores de lixo não
garantem um tratamento dos mesmos pondo assim em risco a saúde pública.
D-DO CONTRATO DE CONCESSÃO
O contrato de Concessão de serviços públicos é o contrato administrativo pelo qual um particular se encarrega de montar e explorar um serviço público, sendo retribuído pelo pagamento de taxas de utilização a cobrar directamente dos utentes.
Compete, aos serviços municipais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c)do
Decreto-Lei n.º 194/2009 de 20 de Agosto que estabelece «o regime jurídico dos serviços
municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e
de gestão de resíduos urbanos», assegurar «a gestão dos sistemas municipais de recolha,
transporte, armazenagem, triagem, tratamento, valorização e eliminação de resíduos
urbanos».
O que parece merecer a análise do MP é se o devido contrato, ou melhor, a sua execução obedece aos principios gerais explanados no artigo 5º nº1 al- b) e d) do diploma acima referido vejamos : garantia da qualidade do serviço e da protecçãodos interesses dos utilizadores e a protecção da saúde pública e do ambienterespectivamente. Estes têm que ser assegurados pelo Municipio, apesar de terem sido delegados os serviços descritos no nº2- artigo 17º nº1 do mesmo diploma.
E- DA NECESSIDADE DE PROTECÇÃO DO AMBIENTE
DIMENSÃO SUBJECTIVA
O Direito constitucional Português
consagra dois modelos de protecção do ambiente, quer enquanto direito
fundamental, quer enquanto tarefa fundamental do Estado de promover o bem-estar
e a qualidade de vida do povo e a concretização de direitos ambientais, nos
termos do art.9ºd) CRP em conjugação com o art.66º nº2 e com o srt.81º a), l),
m) e n) CRP.
Enquanto direito fundamental
podemo-nos apegar a letra do art.66º nº1 CRP que confere aos cidadãos o direito
ao ambiente de vida humana saudável e ecologicamente equilibrada e portanto deve
ser assegurado pelo Estado enquanto direito social, seja por meio de acções
como de omissões.
Cabe também aos cidadão e a
sociedade civil em geral o dever de garantir
que o direito fundamental a um ambiente sadio e ecologicamente
equilibrado não seja violado. Este entendimento resulta de facto deste direito
não ser um puro direito perante o Estado, uma vez que co-envolve o dever de
todos contribuírem para a defesa do mesmo.
Enquanto direito social é conferido
aos cidadãos a faculdade de exigir do Estado prestações positivas, isto é,
concretas actividades de promoção de um ambiente sadio e ecologicamente
equilibrado ou de acções susceptíveis de o degradar como impões limites a acção
Estadual, impedindo-o de agir se essa acção puser em causa o referido direito (vertente
negativa).
DIMENSÃO
OBJECTIVA
Cabe ao Estado assegurar o direito
ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável. A referência ao
estado abrange toda a administração directa e indirecta do Estado e de organismos
especificados para o efeito. Esta incumbência é conferida nos termos do art.66º
nº2 CRP que exige que o Estado intervenha por meio de organismos próprios.
Estes organismos pertencem a Administração ambiental da qual consta no topo da
hierarquia o Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território que mantem
na sua dependência a Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do
Território, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, entre
outros.
Quanto as autarquias locais a
constituição dispõe que as tarefas do Estado são empreendidas em colaboração
com aquelas num plano de horizontalidade, para os mesmos fins, como expressa a
vontade de as decisões se aproximarem do local, onde o problema surge e onde
deve buscar solução.
Termos em que, pelo
exposto, emitimos parecer no sentido de que:
Em relação aos pedidos dos autores:
A) Deve ser julgado procedente o 1º pedido das autoras relativo à condenação do
Municipio de Lisboa à prática dos actos legalmente devidos nos termos dos
artigos 46.º, n.º 2, alínea b) e 66.º e ss. do C.P.T.A., nomeadamente, proceder
à limpeza urbana nos termos da cláusula 15.ª do contrato de concessão e a proceder
à fiscalização do cumprimento das disposições presentes no Regulamento de
Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa ;
B) Quanto ao segundo pedido o MP entende que deve proceder parcialmente, isto é, na parte referente ao
pedido de condenação ao pagamento de uma indemnização pelos lucros cessantes e
não quanto aos danos não patrimoniais pois não parece haver aqui o nexo causal
entre o incumprimento do contrato de concessão e a violação do bom nome da
Sociedade Lislixo ;
C) Deve ser julgada improcedente a pretensão da autora
quanto a condenação da 2ª Ré a prática
do acto devido e de fiscalização uma vez que esta cumpriu tais diligências
tanto quanto consta das queixas feitas ao MP relativamente a ocorrências de
vandalismo nos ecopontos que constam dos nossos autos;
D)Quanto ao 4º pedido entendemos que deve ser julgado parcialmente procedente quanto a prática de actos legalmente devidos e a concreta supervisão e regulação do sector de serviços de gestão de resíduos urbanos, mas não procede na 2ª parte do pedido porque da fundamentação legal invocada pelas autoras não decorre tal incumbência da Ré assegurar a viabilidade económica da Sociedade Lislixo, aliás do artigo invocado o seu nº2 não contém alineas e das alineas constantes do nº 1 não consta nenhuma alinea i).
A Procuradora-Geral
Gertrudes Lúcia
Necurebede nº17711
Joana Soraia Trindade
nº20409
;
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