sábado, 18 de maio de 2013


Os Cursos de Água Partilhados de Portugal e Espanha

«Os cursos de água têm sido, ao longo do tempo, um factor determinante no percurso civilizacional da humanidade»
Teclaff, L.A.. The river basin in history and law


A água é um bem essencial para a vida humana e fundamental para a salvaguarda do ambiente. A importância ambiental, social e económica da água é reconhecida universalmente, sendo considerada um direito elementar da vida humana. Do ponto de vista europeu, a água é um bem a ser protegido, tratando-se de um bem cada vez mais vulnerável e escasso, ainda que renovável limitadamente. Neste sentido, numa evolução recente na consagração do direito universal à água, foi aprovada, em 2010, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, a Resolução nº 64/292, que reconhece o acesso à água potável e ao saneamento básico como direitos humanos básicos, estipulando a necessidade dos Estados assegurarem água potável segura, limpa, acessível e saneamento para todos.
Os rios têm sido, desde sempre, fonte de vida, fonte de riqueza para o Homem, que manteve sempre uma relação de afinidade entre si e as águas, aproveitando os rios como forma de deslocação, como fonte de alimentação, e como local de desenvolvimento de grandes metrópoles. No entanto o homem não soube respeitar esta relação, e é neste sentido que nasceu a consciencialização de um problema que afecta todos os países ribeirinhos: a poluição dos seus cursos de água e a gestão ineficaz dos recursos dos rios.
 Origina inúmeros problemas internacionais o «elevado número de bacias internacionais e indeterminado número de águas partilhadas entre dois ou mais Estados ribeirinhos, associado à ampliação de formas de uso da água»[1], antigamente restringido a fins de navegação e exploração hidroeléctrica. De facto, a nível mundial, cerca de duzentos e quarenta das maiores bacias hidrográficas são partilhadas por um ou mais Estados; de entre vinte das bacias europeias com área de drenagem superior a 80.000 km², treze são bacias fluviais internacionais - a segunda maior é a bacia do rio Danúbio, abrangendo 817.000 km², partilhada por onze países, sendo, portanto, uma das bacias hidrográficas mais internacionais do mundo -; na Península Ibérica as bacias hidrográficas e aquíferos luso-espanhóis ocupam 264.560 Km², cerca de 45% do território peninsular. Portugal e Espanha compartilham cinco bacias hidrográficas formadas pelos rios Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana, sendo que das quatro maiores bacias hidrográficas da Península, três são internacionais[2].
http://aguapublica.no.sapo.pt/lusesp/map_bac3.jpg

Bacias Hidrográficas luso-espanholas.
 Para além do mais, Portugal, pelo traçado geo-político da Península Ibérica, ocupa uma posição quase sempre a jusante[3], tendo uma forte dependência dos recursos hídricos internacionais: cerca de metade dos recursos hídricos nacionais são gerados na parte espanhola das bacias. Surgem problemas, e o nosso país está condicionado às dificuldades próprias dos países situados a jusante, sendo que existe um claro desequilíbrio nas relações com Espanha.
São variados os problemas que têm surgido relacionados com os recursos hídricos transfronteiriços. Nas últimas décadas a quantidade de água utilizada em Espanha tem aumentado acentuadamente, provocando problemas de escassez deste recurso;  também surgem problemas acentuados de qualidade da água devido a práticas agrícolas, e que se prendem com a redução do caudal dos rios e com a sua contaminação; levantam-se reservas relativas à sustentabilidade dos modelos de gestão de água adoptados no país vizinho; surgem também problemas de poluição das águas relacionados com a actividade económica, nomeadamente uma forte contaminação e eutrofização das águas; surgem complicações que nascem com a redução de areias e aportes sólidos, com a destruição de flora e fauna e com os fortes impactos sobre a biodiversidade dos estuário.
Numa perspectiva mais pormenorizada, abordamos a questão da qualidade da água, que pode ser afectada de diferentes modos em relação a problemas específicos que surgiram em relação ao rio Guadiana e ao rio Douro.
Relativamente às águas do rio Guadiana, o rio mais importante do Sul de Portugal, um problema muito mediatizado foi o do nível do seu caudal. Em Espanha o caudal do rio é relativamente elevado, o que permite a absorção e purificação natural dos poluentes do rio. No entanto, o seu caudal foi progressivamente reduzido em resultado de desvios de água feitos no país a montante. Com efeito, antes da entrada do rio em troços internacionais foram construídas uma série de barragens destinadas a fornecer irrigação a uma determinada área de exploração agrícola intensiva, poluindo os lençóis freáticos e as águas do Guadiana por fertilizantes. Uma vez que o caudal do rio se encontra muito reduzido em terras portuguesas, a capacidade de auto-purificação do riu diminui, afectando seriamente a qualidade da água que chega ao Alqueva.
No que se refere ao rio Douro, referimos dois problemas: o desvio de águas em Espanha e o projecto de instalação de um cemitério de resíduos nucleares junto ao rio. O primeiro prende-se com o desvio de águas em Espanha, com o objectivo de irrigar o Sul do país. Este desvio, previsto no Plano Hidrológico Espanhol de 1993, acarretava uma diminuição significativa do caudal de água do rio Douro, nomeadamente, uma redução entre 13% e 17% de caudal no troço português, o que teria enormes consequências em Portugal. Em termos ambientais, a fauna e a flora sofreriam graves danos. O sector energético também seria afectado, nomeadamente, a produção de energia hidroeléctrica. A navegabilidade do rio também ficaria posta em causa.
O segundo problema levantado consistiu no projecto de instalação de um cemitério de resíduos produzidos na centrais nucleares de Espanha junto ao Douro Internacional e, portanto, na fronteira portuguesa, pela empresa nacional de resíduos nucleares de Espanha, conhecida pela sigla ENRESA. As consequências no caso de contaminação radioactiva das águas do rio Douro seriam social, económica e ambientalmente devastadoras para Portugal. O projecto não avançou.

Tomando esta realidade em consideração, reforçamos a importância da questão das águas compartilhadas, não só do ponto de vista da segurança e garantia de acesso mas também da qualidade da própria água. E neste sentido, a pressão crescente sobre os recursos hídricos, associada à consideração de que a água, apesar de renovável, é limitada, levou a uma análise e regulação da realidade acima descrita, a partilha dos rios internacionais.
Deste modo, as bacias hidrográficas do Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana devem ter um tratamento jurídico e normativo que permita a convivência dos interesses soberanos de Espanha e de Portugal.

Debruçamo-nos, primeiramente, sobre a evolução histórica da regulação internacional dos rios entre Espanha e Portugal. Desde o século XIX que os rios partilhados por Espanha e Portugal têm sido objecto de discussões diplomáticas, as quais tiveram como fruto a adopção de diversas convenções bilaterais.
O primeiro tratado assinado entre os dois países que trata da questão data de 1864, consiste no “Tratado de Limites”, que pretendia determinar os direitos respectivos dos Estados, bem como os seus limites territoriais. Foram adoptados dois anexos, sendo que o primeiro continha regras sobre o uso dos rios internacionais e dispunha, no seu artigo 1.º, que «os rios que servem de fronteira internacional entre Portugal e Espanha, na linha compreendida no Tratado de Limites de 1964, sem prejuízo de pertencerem a ambos os países pela metade das respectivas correntes são de uso comum, podendo ser livremente navegáveis».
Em 1912 os dois países celebraram o Acordo sobre as Regras para o Aproveitamento Industrial das Águas dos Rios Limítrofes, no qual se estabelecia a utilização, por cada um dos países, de metade dos caudais dos rios internacionais, e que foi abandonado em 1927. Nesse ano foi firmado o Convénio para Regular o Aproveitamento Hidroeléctrico do Troço Internacional do Rio Douro, permitindo a construção das barragens do Picote, Miranda e Bemposta, em Portugal e de Aldeadávila e Saucelle, em Espanha numa perspectiva de repartição de desníveis. O mesmo aconteceu no Convénio sobre o Aproveitamento Hidroeléctrico do Troço
Internacional do Rio Douro e dos seus Afluentes, de 1964.
Em 1968 foi assinado o Convénio sobre o Uso e Aproveitamento Hidráulico dos Troços Internacionais dos Rios Minho, Lima, Tejo, Guadiana e Chança, e seus afluentes.
Até à Convenção Luso-Espanhola, ou Convenção de Albufeira, de 1998, era este o quadro jurídico regulador das relações ibéricas no domínio dos rios comuns a Espanha e Portugal.

Do ponto de vista internacional, destacamos as Regras de Helsínquia, de 1966, que dispunham, inovadoramente, sobre a gestão de bacias partilhadas.
Em matéria de colaboração transfronteiriça relativa a rios internacionais referimos três convenções que julgamos relevantes:
o   A Convenção sobre o Direito relativo à Utilização dos Cursos de Água Internacionais Para Fins Diversos de Navegação, ou Convenção de Nova Iorque, de 1997, e ratificada por Portugal em 2005 e por Espanha em 2009 não tendo ainda entrado em vigor. O seu objecto prende-se com a orientação dos Estados, através da determinação de princípios gerais[4] que os Estados devem seguir, na negociação de acordos sobre cursos de água e respectivas bacias hidrográficas;
o   A Convenção sobre a Avaliação do Impacte Ambiental num Contexto Transfronteiriço, ou Convenção Espoo, de 1991, e que dispõe que os Estados devem avaliar qualquer actividade que seja susceptível de causar um impacto internacional, tendo entrado em vigor em 1997 e tendo sido ratificada por Espanha e Portugal;
o   E a Convenção sobre a Protecção e Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais, ou Convenção de Helsínquia, de 1992, ratificada por Portugal e Espanha e em vigor desde 1996, e que tem por objectivo “prevenir, controlar e reduzir todo e qualquer efeito adverso significativo sobre o ambiente que resulte de uma alteração antropogénica, no estado de todas as águas superficiais e subterrâneas que marcam, se situam ou atravessam as fronteiras de dois ou mais Estados”, e que promove os Estados a “colaborar e a dar apoio mútuo em casos críticos, mediante a celebração de acordos bilaterais e multilaterais que incluam políticas, programas e estratégias harmonizadas imbuídas dos princípios da precaução e da acção correctiva na fonte dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador”.

Num âmbito apenas das relações entre Espanha e Portugal referimos, agora, que o princípio base comum às convenções em vigor entre os dois países é o do direito de utilização dos rios partilhados por ambos, numa consagração evidente do princípio da soberania territorial limitada. No entanto a solução práctica não corresponde a este princípio, sendo que algumas posições espanholas pautam-se pelo princípio da soberania territorial absoluta.

Nesta medida, Portugal reagiu e iniciaram-se negociações no final de 1993, nas Cimeiras Luso-Espanholas, para a criação e adopção de um novo acordo, que deveria dar resposta às novas questões ambientais e aos novos usos da água estabelecer direitos equitativos e razoáveis sobre os recursos hídricos das bacias hidrográficas luso-espanholas e intensificação, e que se deveria pautar pela aplicação dos princípios de Direito Comunitário e Internacional e na melhoria dos mecanismos de cooperação internacional.
Finalmente, em Novembro de 1998, no âmbito da XIV Cimeira Luso-Espanhola, é assinada a “Convenção sobre Cooperação para a Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas”, ou Convenção Luso-Espanhola, apresentada como «(…) o convénio mais ambicioso e mais eficaz que alguma vez assinámos e que protege tanto os interesses de Espanha como de Portugal» , e «(…) um instrumento da maior importância para a gestão das principais bacias hidrográficas da vertente atlântica da Península Ibérica»[5]. Foram tidas em conta as questões ambientais e a utilização sustentável dos recursos hídricos, contribuindo assim para o desenvolvimento e o bem-estar das populações.
A convenção é constituída por 35 artigos, por dois anexos (sobre permuta de informações e sobre impactes transfronteiriços) e ainda por um protocolo adicional, que possui também um anexo, sobre caudais. Na Parte I constam as disposições que tratam do objecto, artigo 2.º, âmbito de aplicação, artigo 3.º, objectivos e mecanismos de cooperação, artigo 4.º
No número 1 do artigo 2.º da Convenção é determinado o seu objecto, e que consiste em «definir o quadro de cooperação entre as Partes para a protecção das águas superficiais e subterrâneas e dos ecossistemas aquáticos e terrestres deles directamente dependentes, e para o aproveitamento sustentável dos recursos hídricos das bacias hidrográficas» dos rios Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana, sendo que «as Partes observam as normas da presente Convenção e os princípios e as normas de direito internacional e comunitário aplicáveis».
É definido no artigo1.º que:
"Bacia hidrográfica", significa a área terrestre a partir da qual todas as águas superficiais fluem, através de uma sequência de ribeiros, rios e, eventualmente, lagos, para o mar, desembocando numa única foz, estuário ou delta, assim como as águas subterrâneas associadas;
"Águas transfronteiriças", significa todas as águas superficiais e subterrâneas que definem as fronteiras entre os dois Estados, que as atravessam, ou que estão situadas nessas mesmas fronteiras; no caso de desaguarem no mar directamente, o limite dessas águas é o convencionado entre as Partes;
"Impacte transfronteiriço", significa qualquer efeito adverso significativo sobre o ambiente que resulte de uma alteração no estado das águas transfronteiriças, causada na área sob jurisdição de uma Parte por uma actividade humana cuja origem física se situe, total ou parcialmente, numa área sob jurisdição da outra Parte. Entre os efeitos sobre o ambiente contam-se os que afectam a saúde e a segurança do homem, a flora, a fauna, o solo, o ar, a água, o clima, a paisagem e os monumentos históricos ou outras estruturas físicas, ou a interacção desses factores; pode também tratar-se dos que afectam o património cultural ou as condições sócio-económicas que resultem das alterações desses factores;
"Aproveitamento sustentável", significa aquele que permite satisfazer as necessidades das gerações actuais sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades;

É nas Partes II e IV que encontramos mais directamente a regulação das questões de natureza ambiental, associadas ao aproveitamento sustentável dos recursos hídricos partilhados. Nos artigos 17.º a 19.º encontramos tratados os temas da qualidade das águas, da prevenção e controle da poluição, dos usos da água, os caudais e as situações excepcionais, decorrentes de incidentes de poluição acidental, cheias e secas.
No seu artigo 5.º o Protocolo define o regime de caudais para o Rio Guadiana, e as condições para o regime de excepção, associado a períodos de seca severa. No entanto foi remetido para trabalho futuro a definição de muitas questões.
Em 2008 tem lugar a primeira e única emenda ao texto da Convenção. A seca de 2005, e problemas hídricos em Espanha em 2006 e 2007, conduziram à necessidade de redefinir os critérios de determinação do regime de caudais das águas das bacias hidrográficas luso–espanholas. As alterações estabelecem obrigações mais exigentes para Espanha no que se refere aos caudais que deve disponibilizar para Portugal, e concedem a possibilidade de ser considerado em cada bacia hidrográfica um regime de excepção de que resulta a não aplicação dos caudais.

A convenção luso-espanhola de 1998 introduz diversas inovações na regulamentação jurídica das bacias hidrográficas transfronteiriças de Espanha e Portugal, e tem um âmbito mais abrangente que os anteriores tratados blaterais celebrados entre os dois países. A Convenção procura um equilíbrio entre a protecção do ambiente e o aproveitamento dos recursos hídricos de forma a promover o desenvolvimento sustentável dos dois Estados soberanos.

Resta-nos desejar que os dois países cumpram as disposições da Convenção Luso-Espanhola e das Convenções Internacionais, de modo a não ser posto em risco o bem universal que é a água, fundamental para o nosso Planeta.

Ana Maria Quintella
Nº 17984

Bibliografia:
Amador, Teresa e Guimarães, António Andersen, «A Convenção Luso-Espanhola de 1998 em face do direito dos cursos de água internacionais» in Revista Jurídica do Ambiente e Urbanismo, nº 11-12.
Guimarães, António Andersen, «O Rio Douro: um caso prático no âmbito do Direito Internacional dos Cursos de água» in Revista Jurídica do Ambiente e Urbanismo, nº7.
Lautschlager, Lauren, «A Água como um Bem Jurídico Universal frente à Soberania do Estado: experiência na União Europeia.
Rodrigues, Ricardo Bruno S.M., «Os Rios Internacionais».
Silva, Ana Sofia Rodrigues da, O Regime Jurídico da Utilização Diversa da Navegação dos Cursos de Água Internacionais: regras substantivas».
Sendim, José, «Direito Internacional de Recursos Hídricos» in Elementos de Direito de Protecção da Água.


[1] Sendim, José, in «Direito Internacional de Recursos Hídricos», Elementos de Direito de Protecção da Água, citação.
[2] Douro, Tejo e Guadiana.
[3] Portugal é sempre o país a jusante, excepto em relação ao troço final do rio Guadiana.
[4] Princípios Básicos – artigos 5.º a 10.º da Convenção de Nova Iorque
[5] Declaração do Primeiro  Ministro Português na Cimeira de Albufeira.

Sem comentários:

Enviar um comentário