Os Cursos de Água Partilhados de
Portugal e Espanha
«Os cursos de água têm sido, ao
longo do tempo, um factor determinante no percurso civilizacional da
humanidade»
Teclaff, L.A.. The river basin in history and law
A
água é um bem essencial para a vida humana e fundamental para a salvaguarda do
ambiente. A importância ambiental, social e económica da água é reconhecida
universalmente, sendo considerada um direito elementar da vida humana. Do ponto
de vista europeu, a água é um bem a ser protegido, tratando-se de um bem cada
vez mais vulnerável e escasso, ainda que renovável limitadamente. Neste
sentido, numa evolução recente na consagração do direito universal à água, foi
aprovada, em 2010, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, a Resolução
nº 64/292, que reconhece o acesso à água potável e ao saneamento básico como
direitos humanos básicos, estipulando a necessidade dos Estados assegurarem
água potável segura, limpa, acessível e saneamento para todos.
Os
rios têm sido, desde sempre, fonte de vida, fonte de riqueza para o Homem, que
manteve sempre uma relação de afinidade entre si e as águas, aproveitando os
rios como forma de deslocação, como fonte de alimentação, e como local de
desenvolvimento de grandes metrópoles. No entanto o homem não soube respeitar
esta relação, e é neste sentido que nasceu a consciencialização de um problema
que afecta todos os países ribeirinhos: a poluição dos seus cursos de água e a
gestão ineficaz dos recursos dos rios.
Origina inúmeros problemas internacionais o «elevado
número de bacias internacionais e indeterminado número de águas partilhadas
entre dois ou mais Estados ribeirinhos, associado à ampliação de formas de uso
da água»[1],
antigamente restringido a fins de navegação e exploração hidroeléctrica. De facto,
a nível mundial, cerca de duzentos e quarenta das maiores bacias hidrográficas
são partilhadas por um ou mais Estados; de entre vinte das bacias europeias com
área de drenagem superior a 80.000 km², treze são bacias fluviais
internacionais - a segunda maior é a bacia do rio Danúbio, abrangendo 817.000
km², partilhada por onze países, sendo, portanto, uma das bacias hidrográficas
mais internacionais do mundo -; na Península Ibérica as bacias hidrográficas e
aquíferos luso-espanhóis ocupam 264.560 Km², cerca de 45% do território
peninsular. Portugal e Espanha compartilham cinco bacias hidrográficas formadas
pelos rios Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana, sendo que das quatro maiores
bacias hidrográficas da Península, três são internacionais[2].
Bacias Hidrográficas luso-espanholas.
Para além do mais, Portugal, pelo traçado
geo-político da Península Ibérica, ocupa uma posição quase sempre a jusante[3],
tendo uma forte dependência dos recursos hídricos internacionais: cerca de
metade dos recursos hídricos nacionais são gerados na parte espanhola das
bacias. Surgem problemas, e o nosso país está condicionado às dificuldades
próprias dos países situados a jusante, sendo que existe um claro desequilíbrio
nas relações com Espanha.
São
variados os problemas que têm surgido relacionados com os recursos hídricos transfronteiriços.
Nas últimas décadas a quantidade de água utilizada em Espanha tem aumentado
acentuadamente, provocando problemas de escassez deste recurso; também surgem problemas acentuados de
qualidade da água devido a práticas agrícolas, e que se prendem com a redução
do caudal dos rios e com a sua contaminação; levantam-se reservas relativas à
sustentabilidade dos modelos de gestão de água adoptados no país vizinho;
surgem também problemas de poluição das águas relacionados com a actividade
económica, nomeadamente uma forte contaminação e eutrofização das águas; surgem
complicações que nascem com a redução de areias e aportes sólidos, com a
destruição de flora e fauna e com os fortes impactos sobre a biodiversidade dos
estuário.
Numa
perspectiva mais pormenorizada, abordamos a questão da qualidade da água, que
pode ser afectada de diferentes modos em relação a problemas específicos que
surgiram em relação ao rio Guadiana e ao rio Douro.
Relativamente
às águas do rio Guadiana, o rio mais importante do Sul de Portugal, um problema
muito mediatizado foi o do nível do seu caudal. Em Espanha o caudal do rio é
relativamente elevado, o que permite a absorção e purificação natural dos
poluentes do rio. No entanto, o seu caudal foi progressivamente reduzido em
resultado de desvios de água feitos no país a montante. Com efeito, antes da
entrada do rio em troços internacionais foram construídas uma série de
barragens destinadas a fornecer irrigação a uma determinada área de exploração
agrícola intensiva, poluindo os lençóis freáticos e as águas do Guadiana por
fertilizantes. Uma vez que o caudal do rio se encontra muito reduzido em terras
portuguesas, a capacidade de auto-purificação do riu diminui, afectando
seriamente a qualidade da água que chega ao Alqueva.
No
que se refere ao rio Douro, referimos dois problemas: o desvio de águas em
Espanha e o projecto de instalação de um cemitério de resíduos nucleares junto
ao rio. O primeiro prende-se com o desvio de águas em Espanha, com o objectivo
de irrigar o Sul do país. Este desvio, previsto no Plano Hidrológico Espanhol
de 1993, acarretava uma diminuição significativa do caudal de água do rio
Douro, nomeadamente, uma redução entre 13% e 17% de caudal no troço português, o
que teria enormes consequências em Portugal. Em termos ambientais, a fauna e a
flora sofreriam graves danos. O sector energético também seria afectado,
nomeadamente, a produção de energia hidroeléctrica. A navegabilidade do rio
também ficaria posta em causa.
O
segundo problema levantado consistiu no projecto de instalação de um cemitério
de resíduos produzidos na centrais nucleares de Espanha junto ao Douro
Internacional e, portanto, na fronteira portuguesa, pela empresa nacional de
resíduos nucleares de Espanha, conhecida pela sigla ENRESA. As consequências no
caso de contaminação radioactiva das águas do rio Douro seriam social,
económica e ambientalmente devastadoras para Portugal. O projecto não avançou.
Tomando
esta realidade em consideração, reforçamos a importância da questão das águas
compartilhadas, não só do ponto de vista da segurança e garantia de acesso mas
também da qualidade da própria água. E neste sentido, a pressão crescente sobre
os recursos hídricos, associada à consideração de que a água, apesar de
renovável, é limitada, levou a uma análise e regulação da realidade acima
descrita, a partilha dos rios internacionais.
Deste
modo, as bacias hidrográficas do Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana devem ter
um tratamento jurídico e normativo que permita a convivência dos interesses soberanos
de Espanha e de Portugal.
Debruçamo-nos,
primeiramente, sobre a evolução histórica da regulação internacional dos rios
entre Espanha e Portugal. Desde o século XIX que os rios partilhados por Espanha
e Portugal têm sido objecto de discussões diplomáticas, as quais tiveram como
fruto a adopção de diversas convenções bilaterais.
O
primeiro tratado assinado entre os dois países que trata da questão data de
1864, consiste no “Tratado de Limites”, que pretendia determinar os direitos
respectivos dos Estados, bem como os seus limites territoriais. Foram adoptados
dois anexos, sendo que o primeiro continha regras sobre o uso dos rios
internacionais e dispunha, no seu artigo 1.º, que «os rios que servem de
fronteira internacional entre Portugal e Espanha, na linha compreendida no
Tratado de Limites de 1964, sem prejuízo de pertencerem a ambos os países pela
metade das respectivas correntes são de uso comum, podendo ser livremente
navegáveis».
Em 1912 os dois países
celebraram o Acordo sobre as Regras para o Aproveitamento Industrial das Águas
dos Rios Limítrofes, no qual se estabelecia a utilização, por cada um dos
países, de metade dos caudais dos rios internacionais, e que foi abandonado em
1927. Nesse ano foi firmado o Convénio para Regular o Aproveitamento Hidroeléctrico
do Troço Internacional do Rio Douro, permitindo a construção das barragens do
Picote, Miranda e Bemposta, em Portugal e de Aldeadávila e Saucelle, em Espanha
numa perspectiva de repartição de desníveis. O mesmo aconteceu no Convénio
sobre o Aproveitamento Hidroeléctrico do Troço
Internacional do Rio Douro e dos seus
Afluentes, de 1964.
Em 1968 foi assinado o
Convénio sobre o Uso e Aproveitamento Hidráulico dos Troços Internacionais dos
Rios Minho, Lima, Tejo, Guadiana e Chança, e seus afluentes.
Até à Convenção Luso-Espanhola,
ou Convenção de Albufeira, de 1998, era este o quadro jurídico regulador das
relações ibéricas no domínio dos rios comuns a Espanha e Portugal.
Do ponto de vista
internacional, destacamos as Regras de Helsínquia, de 1966, que dispunham,
inovadoramente, sobre a gestão de bacias partilhadas.
Em matéria de
colaboração transfronteiriça relativa a rios internacionais referimos três convenções
que julgamos relevantes:
o
A Convenção sobre o Direito relativo à Utilização
dos Cursos de Água Internacionais Para Fins Diversos de Navegação, ou Convenção
de Nova Iorque, de 1997, e ratificada por Portugal em 2005 e por Espanha em
2009 não tendo ainda entrado em vigor. O seu objecto prende-se com a orientação
dos Estados, através da determinação de princípios gerais[4] que
os Estados devem seguir, na negociação de acordos sobre cursos de água e
respectivas bacias hidrográficas;
o
A Convenção sobre a Avaliação do Impacte
Ambiental num Contexto Transfronteiriço, ou Convenção Espoo, de 1991, e que dispõe
que os Estados devem avaliar qualquer actividade que seja susceptível de causar
um impacto internacional, tendo entrado em vigor em 1997 e tendo sido ratificada
por Espanha e Portugal;
o
E a Convenção sobre a Protecção e
Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais, ou
Convenção de Helsínquia, de 1992, ratificada por Portugal e Espanha e em vigor
desde 1996, e que tem por objectivo “prevenir, controlar e reduzir todo e
qualquer efeito adverso significativo sobre o ambiente que resulte de uma
alteração antropogénica, no estado de todas as águas superficiais e
subterrâneas que marcam, se situam ou atravessam as fronteiras de dois ou mais
Estados”, e que promove os Estados a “colaborar e a dar apoio mútuo em casos críticos,
mediante a celebração de acordos bilaterais e multilaterais que incluam políticas,
programas e estratégias harmonizadas imbuídas dos princípios da precaução e da acção
correctiva na fonte dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador”.
Num âmbito apenas das
relações entre Espanha e Portugal referimos, agora, que o princípio base comum
às convenções em vigor entre os dois países é o do direito de utilização dos
rios partilhados por ambos, numa consagração evidente do princípio da soberania
territorial limitada. No entanto a solução práctica não corresponde a este
princípio, sendo que algumas posições espanholas pautam-se pelo princípio da
soberania territorial absoluta.
Nesta medida, Portugal
reagiu e iniciaram-se negociações no final de 1993, nas Cimeiras
Luso-Espanholas, para a criação e adopção de um novo acordo, que deveria dar
resposta às novas questões ambientais e aos novos usos da água estabelecer direitos
equitativos e razoáveis sobre os recursos hídricos das bacias hidrográficas
luso-espanholas e intensificação, e que se deveria pautar pela aplicação dos
princípios de Direito Comunitário e Internacional e na melhoria dos mecanismos
de cooperação internacional.
Finalmente, em Novembro
de 1998, no âmbito da XIV Cimeira Luso-Espanhola, é assinada a “Convenção sobre
Cooperação para a Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias
Hidrográficas Luso-Espanholas”, ou Convenção Luso-Espanhola, apresentada como
«(…) o convénio mais ambicioso e mais eficaz que alguma vez assinámos e que
protege tanto os interesses de Espanha como de Portugal» , e «(…) um instrumento
da maior importância para a gestão das principais bacias hidrográficas da
vertente atlântica da Península Ibérica»[5].
Foram tidas em conta as questões ambientais e a utilização sustentável dos recursos
hídricos, contribuindo assim para o desenvolvimento e o bem-estar das populações.
A convenção é
constituída por 35 artigos, por dois anexos (sobre permuta de informações e
sobre impactes transfronteiriços) e ainda por um protocolo adicional, que
possui também um anexo, sobre caudais. Na Parte I constam as disposições que
tratam do objecto, artigo 2.º, âmbito de aplicação, artigo 3.º, objectivos e
mecanismos de cooperação, artigo 4.º
No número 1 do artigo 2.º
da Convenção é determinado o seu objecto, e que consiste em «definir o quadro
de cooperação entre as Partes para a protecção das águas superficiais e
subterrâneas e dos ecossistemas aquáticos e terrestres deles directamente
dependentes, e para o aproveitamento sustentável dos recursos hídricos das
bacias hidrográficas» dos rios Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana, sendo que «as
Partes observam as normas da presente Convenção e os princípios e as normas de
direito internacional e comunitário aplicáveis».
É definido no artigo1.º
que:
"Bacia
hidrográfica", significa a área terrestre a partir da qual todas as águas
superficiais fluem, através de uma sequência de ribeiros, rios e,
eventualmente, lagos, para o mar, desembocando numa única foz, estuário ou
delta, assim como as águas subterrâneas associadas;
"Águas
transfronteiriças", significa todas as águas superficiais e subterrâneas
que definem as fronteiras entre os dois Estados, que as atravessam, ou que
estão situadas nessas mesmas fronteiras; no caso de desaguarem no mar
directamente, o limite dessas águas é o convencionado entre as Partes;
"Impacte transfronteiriço",
significa qualquer efeito adverso significativo sobre o ambiente que resulte de
uma alteração no estado das águas transfronteiriças, causada na área sob
jurisdição de uma Parte por uma actividade humana cuja origem física se situe,
total ou parcialmente, numa área sob jurisdição da outra Parte. Entre os
efeitos sobre o ambiente contam-se os que afectam a saúde e a segurança do
homem, a flora, a fauna, o solo, o ar, a água, o clima, a paisagem e os
monumentos históricos ou outras estruturas físicas, ou a interacção desses
factores; pode também tratar-se dos que afectam o património cultural ou as
condições sócio-económicas que resultem das alterações desses factores;
"Aproveitamento
sustentável", significa aquele que permite satisfazer as necessidades das
gerações actuais sem comprometer a capacidade de as gerações futuras
satisfazerem as suas próprias necessidades;
É nas Partes II e IV
que encontramos mais directamente a regulação das questões de natureza
ambiental, associadas ao aproveitamento sustentável dos recursos hídricos
partilhados. Nos artigos 17.º a 19.º encontramos tratados os temas da qualidade
das águas, da prevenção e controle da poluição, dos usos da água, os caudais e
as situações excepcionais, decorrentes de incidentes de poluição acidental,
cheias e secas.
No seu artigo 5.º o
Protocolo define o regime de caudais para o Rio Guadiana, e as condições para o
regime de excepção, associado a períodos de seca severa. No entanto foi
remetido para trabalho futuro a definição de muitas questões.
Em 2008 tem lugar a
primeira e única emenda ao texto da Convenção. A seca de 2005, e problemas
hídricos em Espanha em 2006 e 2007, conduziram à necessidade de redefinir os
critérios de determinação do regime de caudais das águas das bacias
hidrográficas luso–espanholas. As alterações estabelecem obrigações mais
exigentes para Espanha no que se refere aos caudais que deve disponibilizar
para Portugal, e concedem a possibilidade de ser considerado em cada bacia
hidrográfica um regime de excepção de que resulta a não aplicação dos caudais.
A convenção
luso-espanhola de 1998 introduz diversas inovações na regulamentação jurídica
das bacias hidrográficas transfronteiriças de Espanha e Portugal, e tem um
âmbito mais abrangente que os anteriores tratados blaterais celebrados entre os
dois países. A Convenção procura um equilíbrio entre a protecção do ambiente e
o aproveitamento dos recursos hídricos de forma a promover o desenvolvimento
sustentável dos dois Estados soberanos.
Resta-nos desejar que
os dois países cumpram as disposições da Convenção Luso-Espanhola e das
Convenções Internacionais, de modo a não ser posto em risco o bem universal que
é a água, fundamental para o nosso Planeta.
Ana Maria
Quintella
Nº 17984
Bibliografia:
Amador, Teresa e Guimarães, António
Andersen, «A Convenção Luso-Espanhola de 1998 em face do direito dos cursos de
água internacionais» in Revista Jurídica do Ambiente e Urbanismo, nº 11-12.
Guimarães, António Andersen, «O Rio
Douro: um caso prático no âmbito do Direito Internacional dos Cursos de água»
in Revista Jurídica do Ambiente e Urbanismo, nº7.
Lautschlager, Lauren, «A Água como um
Bem Jurídico Universal frente à Soberania do Estado: experiência na União
Europeia.
Rodrigues, Ricardo Bruno S.M., «Os Rios
Internacionais».
Silva, Ana Sofia Rodrigues da, O Regime
Jurídico da Utilização Diversa da Navegação dos Cursos de Água Internacionais:
regras substantivas».
Sendim, José, «Direito Internacional de Recursos
Hídricos» in Elementos de Direito de Protecção da Água.
[1] Sendim,
José, in «Direito Internacional de Recursos Hídricos», Elementos de Direito de
Protecção da Água, citação.
[2] Douro,
Tejo e Guadiana.
[3] Portugal
é sempre o país a jusante, excepto em relação ao troço final do rio Guadiana.
[4]
Princípios Básicos – artigos 5.º a 10.º da Convenção de Nova Iorque
[5]
Declaração do Primeiro Ministro
Português na Cimeira de Albufeira.
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