domingo, 14 de abril de 2013

A ação popular de que cor será?



Introdução

            Este texto tem destina-se a proferir algumas considerações sobre a figura da ação popular, como instrumento de reação a lesões provocadas no ambiente e que ferem interesses e direitos de vários sujeitos, sejam eles pessoas jurídicas coletivas ou singulares. Primeiramente, far-se-á uma referência do contexto em que esta figura surge na Constituição de 1976 (I). Depois, uma definição sobre o que é um interesse difuso (II). Após isto, um estudo sobre os âmbitos da figura (III), a que se seguirá uma breve referência processual (IV), terminando-se a exposição com umas brevíssimas conclusões, de cariz pessoal (V).


I


            A) Originariamente, a ação popular vinha consagrada no artigo 49.º da Constituição da Republica Portuguesa (doravante designada CRP). Hoje em dia, mercê da revisão constitucional de 1982, esta figura vem, no texto constitucional, referida no artigo 52.º, e, em sede de lei ordinária, regulada na Lei n.º83/95 de 31 de Agosto (Lei da Ação Popular (LPA) ou Lei de Participação Procedimental e da Ação Popular (LPPA)).
            Ao integrar, na Constituição, a figura da ação popular, o legislador estava a transpor a “ação popular corretiva”, regulada no artigo 822.º do Código Administrativo de 1936/40 (hoje presente no artigo 55/2.º do Código de Procedimento Administrativo atual (doravante CPTA)). Esta era um instrumento que permitia aos eleitores de uma certa circunscrição administrativa impugnar, contenciosamente, uma decisão administrativa que fosse considerada ilegal, apenas invocando como fundamento essa ilegalidade. No fundo, estava-se aqui perante uma ação pública, com um alargamento de legitimidade para os particulares. Era esta ação corretiva que o legislador constituinte tinha em mente, em 1976, quando redigiu o artigo 49/2.º. Tinha-mos aqui uma marca de que a legitimidade eleitoral ativa, num Estado de Direito Democrático, em que a participação política dos cidadãos de uma comunidade é fundamental, também passa por uma legitimidade processual, e não só numa legitimidade de participar no sufrágio universal.
            A CRP não previa instrumentos que fossem capazes de garantir a defesa dos valores que enunciava e que seriam suscetiveis de fruição pela comunidade. Por esta razão, como conclui a Professora Carla Amado Gomes, até 1989, a CRP referia-se à ação popular corretiva do Código Administrativo. A revisão constitucional de 1989 (que deu a atual epígrafe ao artigo 52.º) introduziu o n.º3, que substituiu o n.º2 da redação original, desenvolvendo a figura em análise. A partir dessa altura, tem-se uma clarificação daquilo sobre o qual versa a ação popular: a defesa de interesses da comunidade, que não podem ser individualmente apropriados – são os ditos “interesses difusos”. A necessidade de defesa passa a reportar-se ao bem jurídico em questão, e já não ao cidadão interessado. Daí a justificação da referência ao “todos” do nº.3.
            Em 1992, o Código de Procedimento Administrativo introduziu uma outra modalidade de ação popular: a destinada à defesa de interesses individuais homogéneos. Esta ação traduz o fato de, da violação de um interesse difuso poder resultar a lesão de um interesse individual. A lesão destes dois interesses é proveniente do mesmo fato, tem por origem a mesma causa. Daí que o corpo do artigo 52º/3 CRP consagre o direito de o lesado, ou de os lesados, pedirem uma indemnização por essa lesão. Pode-se, assim, afirmar que, ao fim altruísta em que se baseia a ação popular, por vezes, se junta um fim egoísta (que se traduz no direito a uma indemnização). Deste modo, está-se em medida de se dizer que o direito ao ambiente (artigo 66.º/1 CRP) também é, certas vezes, suscetível de apropriação individual, consubstanciando um direito fundamental, no mínimo, um interesse digno de tutela jurídica.
            Entretanto, a CRP continuava a não regular a vertente processual da figura, o que apenas viria a ocorrer em 1995, com a mencionada Lei n.º83/95 de 31 de Agosto.
           
B) Após esta primeira abordagem, já se está em medida de se poder definir o que é a ação popular. No dizer dos Professores Jorge Miranda e Pedro Machete, ela será a ação que permite aos membros da comunidade, a todos eles, agirem como “guardiães” dos bens jurídicos que pertencem a toda a comunidade.
            Deve dizer-se que a ação popular a que se refere a CRP e a que se refere o CPTA são ações distintas. Houve uma amálgama que “contaminou” a CRP e que se alastrou pela Lei da Ação Popular. O artigo 52/3.º da CRP relaciona-se com a proteção de interesses difusos, oponíveis aos órgãos públicos e a outros particulares, enquanto que a ação pública do CPTA tem a ver com o controlo objetivo da legalidade da atividade da Administração Pública (há aqui, como referem os professores acima citados, uma ideia de “auto-controlo do poder público”). Deste modo, a exigência de capacidade eleitoral ativa feita pelo artigo 2º/1 da LPPAP não faz qualquer sentido. Para a Professora Carla Amado Gomes, é uma “ilusão de ótica” (para maior desenvolvimento ver infra III, B))
            Para o Professor Sérvulo Correia, a distinção entre ação popular e ação pública, depois da entrada em vigor da LPPAP, reside na legitimidade ativa, consoante se trate de uma entidade coletiva pública (que visa defender a legalidade de um ato administrativo), ou de um cidadão, ou outro ente coletivo, como associações ou fundações (que também visam a garantia da legalidade objetiva, num contexto de ameaça ao bem jurídico).
           
            C) O Professor Vasco Pereira da Silva formula severas críticas a esta disposição constitucional. A primeira, consiste no fato de o legislador usar de forma indistinta as figuras da ação popular, da ação coletiva e da ação para defesa de interesses individuais homogéneos. Outra, é a relação que é feita entre a figura da responsabilidade civil e da actio popularis, que não tem sentido. Esta “confusão” é transposta e agravada para a LAP, nomeadamente no seu artigo 22.º, formulando novas críticas: os n.ºs 1 e 3 desse artigo referem-se a uma indemnização ambiental a título individual, o que é deslocado numa lei sobre ação popular; o n.º2 é igualmente de difícil compreensão, não se percebendo se estamos face a uma lesão de direitos comuns a vários titulares, individualizáveis, mas não individualizados (assim já não seria uma ação popular, mas uma ação subjetiva), ou se estamos defronte uma defesa do interesse público, caso em que não se percebe quem será o beneficiário da indemnização. O Professor procede a outras críticas sobre outras disposições da LAP.




II


            Passemos agora à análise da definição de “interesse difuso”.
            Este será um interesse tutelado e reconhecido, juridicamente, e pertencente a todos aqueles que integram uma dada comunidade, pelo simples fato de dela fazerem parte. O interesse respeita a toda a comunidade e não a um indivíduo em concreto, isto é, é um interesse insuscetível de apropriação individual.
            Como garantir a tutela deste interesse difuso através da ação popular, constitucionalmente consagrada no artigo 52º/3? Esta tutela coexiste com a dos interesses públicos e com a dos interesses privados/subjetivos. Em relação aos segundos, a referência já foi acima feita. São aqui considerados os interesses individuais homogéneos, cuja violação resulta de um mesmo fato. Ilustrando com um exemplo, uma fábrica que contamina um rio com produtos tóxicos, afeta não só o meio ambiente, mas também a saúde pública e a integridade física de todas as pessoas que estão diretamente em contato com esse rio (por exemplo, os agricultores que se servem dessa água para alimentar o gado e regar a colheitas que o sustentam). Neste caso, os sujeitos diretamente lesados terão o direito de pedir uma indemnização pelos danos sofridos. Todos eles terão um “interesse individual homogéneo”, pelo fato de as lesões que sofreram decorrerem da mesma contaminação, produzida pela fábrica. Quanto aos primeiros, os públicos, estes podem ser o fim a prosseguir por uma certa entidade de direito público. Nesta hipótese de sobreposição, o interesse difuso não fica descaraterizado enquanto tal. Dá-se o exemplo da proteção da saúde, que traduz um dever para o Estado (artigo 64.º CRP) e que não deixa de ser um interesse geral da comunidade (artigo 52º/3, a) CRP).
            Tal como refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa, os interesses difusos estão abrangidos pela garantia constitucional de acesso aos tribunais, consagrada no artigo 20º/1CRP, reforçando esta ideia com a referência ao artigo 268º/4 e 5 CRP.
            Existe uma distinção entre interesses difusos e interesses coletivos. Esta distinção pode ser vista no artigo 60º/3 CRP. Face a esta situação, surge a questão de saber se a ação popular pode ser utilizada para prosseguir fins coletivos. Refira-se que o interesse coletivo é, por natureza, mais restrito, visto reportar-se a um grupo ou comunidade determinado. Como defende o Professor Sérvulo Correia, a especificidade deste tipo de interesse reside no fato de ele ter uma tutela supra-individual, ou seja, ser um interesse protegido por uma entidade, por uma associação, o que reforça a dimensão grupal deste, não sendo, por isso, um interesse suscetivel de apropriação individual. Contudo, isto não significa que a pessoa coletiva se o aproprie. A tutela poderá ser desencadeada pela associação ou por um membro que a ela pertence. Desta feita, a resposta à questão levantada é que sim, que a ação popular poder ser utilizada para a proteção deste tipo de interesse. Colaço Antunes refere que os interesses coletivos têm um titular concreto e determinado, tendo estes uma estrutura organizativa, surgida da relação estabelecida para a prossecução de certos fins. Já os interesses difusos não têm titular, nem objeto definidos à partida.
            Pode acrescentar-se que o interesse difuso consubstancia um direito subjetivo público, que por sua vez se traduz no dever, por parte do Estado, de o garantir e preservar.



III


            Acabada a referência à parte constitucional da questão em estudo (embora se esteja longe de se ter tudo referido e discutido), proceder-se-á, de seguida, à análise da regulação da figura, em sede de lei ordinária. No entanto, antes disso, é fundamental fazer-se uma delimitação dos âmbitos objetivo e subjetivo da ação popular, em sede de Direito do Ambiente.  

            A) O âmbito objetivo reporta-se à seguinte pergunta: a ação popular visa defender o quê? A resposta vem consagrada no artigo 1º/2 LAP, e no n.º3 do artigo 52º/3CRP. Mencione-se, desde já, o caráter meramente exemplificativo deste preceito da LAP. O legislador ordinário poderá, assim, ter em conta outros bens jurídicos do interesse da comunidade, desde que possam ser objeto de fruição por parte dos seus membros, isto em conformidade com o defendido pelos Professores Jorge Miranda, Carla Amado Gomes e Pedro Machete. Contra esta doutrina está o Professor Sérvulo Correia, que considera estarmos perante um elenco taxativo, que visa evitar a generalização da ação popular, isto é, um elenco que funciona como um modo de “filtragem”.
            Os bens do domínio público a que se refere a alínea b) do artigo 52º/3 da CRP integram todos os bens que, apesar de serem públicos, podem ser fruídos por qualquer membro da comunidade. A utilidade pública não se cinge ao uso feito pelos entes públicos.
           
            i) O objeto da ação popular poderá, designadamente, visar a prevenção da violação de certos interesses comuns a todos os membros da comunidade; poderá ter uma vertente destrutiva, ou anulatória, dos efeitos lesantes; poderá configurar-se numa ação repressiva, tendente a perseguir os titulares dos órgãos das entidades públicas infratoras; poderá ter uma vertente indemnizatória, para compensação dos danos sofridos pela lesão do interesse comum; ela será substitutiva, ou supletiva, se visar a defesa de bens integrados no património da entidade pública.

            B) Por sua vez, a questão formulada para se analisar o âmbito subjetivo é a seguinte: a actio popularis visa defender quem? Acerca desta questão já foram versadas, acima, algumas linhas, nomeadamente quanto ao fato de o artigo 2º/1 da LAP exigir o gozo dos direitos civis e políticos. Desse requisito pode retirar-se a ideia de que apenas os cidadãos portugueses podem lançar mão desta ação (não só os portugueses, mas também os europeus, por via do vínculo da cidadania europeia, e todos os nacionais de Estados com os quais Portugal tenha acordos). Esta é uma interpretação que poderá ser feita, tendo em conta a localização sistemática do artigo 52.º CRP no capítulo referente a direitos, liberdades e garantias de participação política, e considerando a exceção feita do n.º2 do artigo 15.ºCRP que, depois de equiparar, no seu n.º1, os estrangeiros aos nacionais, exceciona desta equiparação os direitos políticos (exceção da exceção são os n.ºs 3, 4 e 5). Como já foi referido, a exigência de capacidade eleitoral ativa não faz sentido, seguindo o propugnado pela Professora Carla Amado Gomes. Como argumentos para defender a extenção da legitimidade aos estrangeiros não europeus, residentes em Portugal, aos turistas que frequente regularmente o País, entre outros, poder-se-ão referir os seguintes: visto que a poluição não tem efeitos apenas num certo território bem delimitado, tendo sim um caráter cada vez mais universal, é compreensível, e defensável, que um cidadão que não seja da nacionalidade do país de onde provem a lesão, possa reagir; os bens jurídicos ambientais caraterizam-se pela sua imaterialidade, fazendo com que sejam de aproveitamento universal; a legitimidade versada no artigo 2º/1 LAP já foi derrogada por um preceito, não em matéria ambiental, mas em matéria de património cultural (artigo 25º/1 da Lei n.º107/2001, de 8 de Setembro (é a Lei do Património Cultural), que reconhece a legitimidade de cidadãos ou associações, nacionais ou não, de requerem a classificação de um bem como bem de interesse cultural). O artigo 52.º CRP deve ser interpretado de forma axiológica, desprendendo-se do contexto em que foi criado.
            A eventual crítica que poderá ser feita a esta tese é a de que tal solução levará a um entupimento da justiça administrativa. Para a Professora a resposta passa pelo bom senso, visto que será pouco provável que um estrangeiro, nomeadamente um que esteja de passagem, queira, face a uma lesão ambiental, iniciar um processo em tribunal. Porém, não deixa de ser aconselhável o alargamento da legitimidade a todos aqueles que podem fruir dos bens públicos, sejam nacionais ou estrangeiros, de reagir e combater a sufocante poluição que se está a viver.


IV


            A ação popular poderá ser de dois tipos: administrativa ou civil (artigo 12.ºLAP). A ação administrativa será da competência dos tribunais administrativos, pela circunstância de emergirem de uma relação jurídico-administrativa (artigo 212º/3 CRP). Já a ação civil será da competência dos tribunais cíveis.
            A ação administrativa poderá revestir, designadamente, a forma de um instrumento contencioso com fundamento na ilegalidade de atos administrativos lesantes de interesses da comunidade, ou a forma de uma ação de responsabilidade civil, para o caso de ter como fim o ressarcimento de danos provocados pela Administração.
            A Professora Carla Amado Gomes refere que a ação popular não é um tipo de ação, mas sim um modo de alargamento da legitimidade processual. É uma ação que tem certas especificidades ao nível do procedimento, reguladas na LAP, designadamente quanto ao indeferimento da petição inicial (artigo 13.º); quanto aos poderes inquisitórios do juiz (artigo 17.º); o regime dos recursos, sobretudo quanto aos seus efeitos (artigo 18.º); e quanto ao regime especial de preparos e custas (artigo 20.º).



V
Conclusão


            Num espírito de consciencialização da necessidade premente de defesa do meio ambiente, considero ser necessário proceder-se a uma revisão sobre a matéria da ação popular, a fim de se albergarem o máximo de bens passíveis de tutela jurídica, e alargar-se o âmbito subjetivo desta figura, para que todos, estrangeiros ou nacionais, lutem pela preservação do Planeta, o que, sem dúvida alguma, contribuirá para uma melhoria da qualidade de vida de todos os povos, estejam eles em que ponto da Terra estiverem. 


BIBLIOGRAFIA


  • Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Lisboa, 2005, páginas 666, ss.
  • Gomes, Carla Amado, D.Quixote, Cidadão do Mundo: Da Apoliticidade de Legitimidade Popular Para Defesa de Interesses Transindividuais, Anotação ao Acórdão STA, I, 13 janeiro 2005, in Textos Dispersos de Direito do Ambiente, II, Lisboa, 2008; e Introdução ao Estudo do Direito do Ambiente, AAFDL, Lisboa, 2012
  • Miranda, Jorge e Pedro Machete, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora
  • Silva, Vasco Pereira da, Verde Cor de Direito, Almedina, 2002
  • Sousa, Miguel Teixeira de, Legitimidade Processual e Ação Popular no Direito do Ambiente, in Direito do Ambiente, edição do Instituto Nacional de Administração, Oeiras, 1994




Gary Labareda, nº19613, 4.ºAno, Turma Dia, subturma3, 2012/2013

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